Cadê a taboca? Entenda o que está por trás do sumiço do biscoito das ruas de Salvador

Cadê a taboca? Entenda o que está por trás do sumiço do biscoito das ruas de Salvador

Redação Alô Alô Bahia

redacao@aloalobahia.com

Thais Borges, do Jornal Correio*

Sora Maia/CORREIO

Publicado em 27/04/2024 às 08:09 / Leia em 10 minutos

O plano era fazer uma sobremesa que, entre a família e os amigos, já tinha se tornado clássica: cream cheese, creme de leite, goiaba cascão e – a estrela do prato – taboca. A receita havia sido criada pelo fotógrafo e jornalista Giácomo Mancini, 69 anos, há pelo menos uma década, quando participava de uma confraria em que amigos se reuniam para inventar novos pratos.

Ele só não imaginava que, ao tentar reproduzir a receita mais uma vez, no início do mês passado, tivesse um problema: encontrar taboca em Salvador. Começou, assim, uma peregrinação em busca do biscoito que, pelo Brasil, recebe nomes como biju, chegadinho, cavaquinho e cavaco-chinês.

“Eu achava com facilidade na Rua Lucaia, mas acabou o cruzamento. Botei na internet, nos stories (do Instagram) perguntando e um amigo me disse que, no fim de linha da Boca do Rio, teoricamente, acharia fácil. Não achei nenhum”, conta.

(Foto: Salvador da Bahia)

No fim de linha, ouviu de um taxista que era garantia de certeza achar no Mercado de Itapuã. “Me piquei para o mercado e lá, um cara disse: ‘no mercado? Aqui não. No máximo, tem um rapaz que passa aqui de vez em quando, mas não é toda hora’. Resultado: não achei”, conta.

Um mês depois, já em abril, ele continuava sem encontrar o biscoito. A saga de Mancini é uma alegoria para um contexto maior: o possível desaparecimento da taboca das ruas de Salvador. Se, antes, encontrar um vendedor com seu triângulo dependia muito do acaso e um pouco de sorte, agora parece mais um desafio quase impossível.

Entre 2015 e 2019, a gastrônoma e pesquisadora Laís Portela mapeou 19 vendedores de taboca em Salvador, em uma pesquisa que desenvolveu na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Hoje, ela já recebe relatos que parte daqueles lugares já não têm nem sinal do biscoito. Na avaliação dela, o primeiro motivo por trás disso é a perda do hábito da alimentação de rua devido à urbanização.

“A gente não tem mais uma tradicionalidade urbana que de ficar sentado nas portas quando esse tipo de guloseima passava. Sorvete, pipoca, taboca. Tinha uma relação de aguardar porque sabia que a pessoa ia passar. Hoje, a gente pede comida. Não espera aparecer na rua”, explica.

Urbano

As mudanças na dinâmica da cidade provocam, indiretamente, outra consequência: boa parte dos mais jovens já não têm a imagem – ou mesmo a lembrança – do consumo de taboca. Na pesquisa de Laís, outro ponto identificado foi que pessoas com menos de 22 anos já não reconheciam o biscoito.

Para muita gente, a taboca tinha virado uma ‘comida de infância’. Se tornou o item nostálgico para uma geração que, hoje, já está na casa dos 30 anos. A cada geração seguinte, esse referencial de tempo já fica mais distante ou mesmo impossível.

“O produto acaba perdendo venda. Acho que falta um pouco desse cuidado com a comida de rua de Salvador”, avalia ela, que começou a pesquisa porque via que faltava representatividade para a taboca.

Nas redes sociais, que costumam ser mais buscadas pelos mais novos para encontrar serviços e produtos, é difícil localizar algum vendedor de taboca ou mesmo algum ponto fixo que tenha o biscoito. No Instagram, os poucos posts públicos sobre a guloseima são de consumidores. No TikTok, o algoritmo nem mesmo mostra o biscoito – provavelmente, pela falta de vídeos – e exibe conteúdos de ‘tapioca’.

Isso não quer dizer, contudo, que a taboca não tenha presença digital. Ela até tem, mas fora da Bahia – e sob outras alcunhas. Tanto no TikTok quanto no Instagram, por exemplo, é fácil encontrar conteúdos de ‘cavaco chinês’, nome pelo qual é conhecido em estados como Sergipe. No Instagram, dá até para comprar páginas de marcas que vendem cavaco chinês… em Aracaju.

É como se a taboca baiana tivesse deixado de passar por uma transição pela qual outras guloseimas que eram vendidas na rua passaram. Laís Portela cita o caso das cocadas, que já foram vendidas por pessoas que trabalham exclusivamente com o item. Atualmente, contudo, elas são encontradas facilmente em qualquer tabuleiro de acarajé.

“Antes, você não precisava ser baiana de acarajé. Tinha também o quebra-queixo, que era outra forma de cocada e que hoje não é encontrado dessa forma. Algumas transições foram se unificando com outras”, pondera.

(Foto: Reprodução)

Vendas

Em geral, a venda da taboca é separada da produção. O vendedor Jairo Lopes, 46, trabalha com a guloseima há 30 anos, sempre nas ruas da Pituba. Ele compra um pacote com quatro biscoitos por R$ 3 e vende a R$ 7, em uma produção caseira em Mirante de Periperi. A Avenida Suburbana, em especial, nas proximidades de Periperi, foi apontada pela maioria das pessoas ouvidas pela reportagem como o principal bastião da produção de taboca hoje.

Jairo tem a mesma rotina há três décadas: de sexta-feira a domingo, ele sai de casa às 10h da manhã e só retorna depois das 19h, depois de circular praticamente todas as ruas da Pituba. Sempre sai tocando o triângulo, que ainda é um dos principais símbolos de que a taboca chegou a cada rua. Ele tem dois irmãos na mesma faixa etária que também seguem o mesmo ofício.

Ele diz não ter percebido uma diminuição no número de vendedores nos últimos meses, porque não vende em outras áreas da cidade. Lembra, no entanto, de colegas de profissão que já abandonaram a taboca, devido à idade. Para Jairo, as longas caminhadas deixam os trabalhadores exauridos.

“O que mudou mesmo é que o pessoal antes comprava bastante, mas agora caiu mais. Num dia de sexta-feira, eu vendia 30, 40 (pacotes). Agora, tem dia que vem 20, tem dia que vende 15 e tem dia que vende 10”, conta.

Durante a semana, para complementar a renda, ele faz bicos de ajudante de pedreiro. Mas ainda acredita que vender taboca vale a pena. “Eu não estudei, não arrumei outra coisa. A gente começou muito cedo e é melhor do que ficar parado, porque vai fazendo um trocado. Tenho que levar o sustento para dentro de casa”, afirma ele, que não tem filhos e se diz também consumidor de taboca. “Como sempre”, acrescenta.

Covid-19

A pandemia foi um divisor de águas também, na avaliação da administradora e fotógrafa Fernanda Cabral, 42 anos. Moradora da Pituba há 20 anos, ela via os vendedores de taboca na rua quase semanalmente – em especial, nos fins de semana.

Desde a Covid-19, porém, o cenário ficou diferente. “Até vir a pandemia, os via com frequência. Depois, eles sumiram”, comentou, quando conversou com a reportagem pela primeira vez, há um mês. Ela também estava tentando encontrar algum vendedor.

Antes, o lugar mais certo de encontrar era o cruzamento da Rua Pernambuco com a Rua Ceará. Três semanas depois, no fim de março, ela conseguiu encontrar um vendedor: ele estava com uma cesta de tabocas entre a Rua Pernambuco e a Avenida Manoel Dias da Silva.

No X, antigo Twitter, onde usuários costumam inclusive indicar profissionais e serviços, a maioria dos posts que mencionam a taboca é justamente de pessoas que querem comprar o biscoito. “Eu ainda consigo comprar taboca em algum lugar de Salvador?”, questionou uma usuária, em uma postagem pública, em fevereiro. As parcas respostas que davam alguma orientação citavam o semáforo perto da UPA dos Barris. Sem nome, contato ou endereço.

A reportagem conversou com dois chefs que costumavam usar taboca no passado – fosse para cardápios fixos, fosse para receitas pontuais. Nenhum deles tinha fornecedor fixo e ambos apontaram o cruzamento da Rua Lucaia com a Avenida Vasco da Gama como o local ao qual recorriam. Mas, se esse era um lugar certeiro de encontrar a taboca no passado, hoje o cenário é outro. O principal motivo citado foi a mudança na paisagem urbana. Com a implantação do sistema BRT, o cruzamento deixou de existir.

O mistério que ficou foi para onde os vendedores de taboca daquele ponto foram – se é que foram para outro lugar ou deixaram mesmo de vender o produto.

“Antes, já tinha problema para encontrar. Não era toda hora que tinha. Uma vez, quis fazer a mesma receita e tive dificuldade de achar, mas quando já ia desistir, passei na Lucaia e, lá, tinha um rapaz vendendo”, conta Giácomo Mancini.

Produção de taboca tem desafios sociais na Bahia

Apesar de ser muito tradicional na Bahia, a taboca não é uma guloseima local. As prováveis origens remontam a Espanha, onde teria sido inventada, e a Portugal. Conhecida nos dois países, respectivamente, como barquillos e barquilho, ela teria sido trazida pelos europeus.

A pesquisadora e gastrônoma Laís Portela identificou que o primeiro registro da taboca no Brasil é de 1950, em Alagoas. De lá, foi se espalhando principalmente pelos estados do Nordeste, mas é consumida em todas as regiões do país. Foi assim que ganhou um nome diferente em cada lugar. Na Bahia, a guloseima virou taboca provavelmente pela influência do tupi, como é chamado o bambu na língua indígena.

Aqui, contudo, um dos grandes desafios para a produção da taboca é o aspecto social, na avaliação de Laís. Durante a pesquisa, ela teve acesso a alguns locais que fabricavam taboca. Era possível notar que a população de trabalhadores envolvidos no processo estava em situações de vulnerabilidade social e esse contexto, por vezes, levava a mudanças em ingredientes básicos da receita.

“Quando a gente vinha experimentar aqui em Salvador, parecia que tinha mais coisa, como um leve gosto de coco ou farinha láctea”, lembra.

De fato, era o que acontecia. A receita básica leva farinha de trigo, água e açúcar. No entanto, Laís identificou que, quando os produtores conseguiam vender bem, adicionavam outros ingredientes, como o coco, o leite de coco e até a farinha láctea.

Muitos dos trabalhadores se recusaram a participar da pesquisa por medo de ter algum problema com autoridades como as de vigilância. Para chegar ao formato da taboca, ela encontrou quem fizesse o biscoito até com cabo de vassoura, ao invés de moldes de ferro como é feito fora do Brasil.

“As pessoas faziam em situação precária, então talvez o medo fosse sobre o manuseio do produto. Talvez faltasse uma situação de aprendizagem de higiene na hora da produção. E, na pesquisa, muita gente dizia que não confiava na taboca (para comprar) porque tinha receio de não saber como tinha sido produzida”.

Em um dos locais visitados por ela, a produtora chegou a permitir que Laís visitasse o espaço de fabricação, mas sem imagens ou entrevista. O maior fluxo desse espaço era aos sábados, quando pessoas de diferentes partes da cidade pegavam os biscoitos no local e saíam para vender em ônibus e semáforos. Muitos não usavam mais o triângulo nem colocavam as tabocas na lata.

“A gente foi observando essa mudança social, porque muitos vendiam dentro de caixotes mesmo. A proposta era de vender como uma guloseima qualquer”.

 

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