10 Jan 2024
Mesmo expulsas da festa, baianas deram continuidade a tradição na Festa do Bonfim

Mas, nem sempre foi assim. No século XIX, a presença do povo e suas crenças na celebração para o Senhor do Bonfim não era bem vista pela Igreja. A própria tradição da lavagem, que antes incluia a parte interna da igreja, teve de se adaptar e os grupos de devotos passaram a lavar só o adro e as escadarias. A proibição da presença de baianas e outras pessoas do povo, a maioria negras, tinha mais relação com racismo do que com fé.
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A tradição de subir a Colina Sagrada e pedir as bênçãos ao Senhor do Bonfim já era repetida há mais de 140 anos em Salvador quando a Igreja Católica decidiu proibir o cortejo. A ideia era evitar que os costumes populares e de devotos das religiões de matriz africana fossem associados à cerimônia católica. O arcebispo de Salvador e primaz do Brasil na época, Dom Luís Antonio dos Santos, recebeu apoio da polícia, que reprimia a população e proibia a lavagem.

“A Igreja até tentou, mas não conseguiu vencer essa batalha. Os espaços da cidade têm sempre uma lógica popular. São as pessoas que dão o tom das festas populares e a lavagem continuou existindo, sem, no entanto, entrar no templo”, explica o historiador Murilo Mello.
A história conta que a origem da festa católica é a partir de uma promessa do capitão português e traficante de escravizados Theodósio Rodrigues de Faria, que trouxe para Salvador uma imagem do Senhor do Bonfim, depois de ter invocado a proteção do Cristo crucificado durante uma tempestade no mar. Considerado o primeiro benfeitor da Basílica do Senhor do Bonfim, o português foi enterrado dentro do templo, em 1775.
Em uma das pinturas no teto da igreja, há um grupo de marinheiros entregando o navio para a proteção divina. Senhor do Bonfim, em Portugal, protegia os viajantes que atravessavam o Atlântico rumo ao Brasil.
Nas origens da festa, negros e negras escravizados eram colocados para realizar uma grande limpeza na igreja antes das missas. Com o passar dos anos, os africanos e seus descendentes associaram a lavagem ao culto ancestral a Oxalá e deram seus próprios significados à celebração. Daí surgiu o costume das mulheres vestidas de branco e prata para lavarem o adro e as escadarias.
“Enquanto as pessoas lavavam a parte interna da igreja, começou a tradição de música na parte de fora. Ao longo do tempo a lavagem se reinventou, com a presença do samba de roda e dança. A sociedade e o contexto foram sendo alterados”, completa Murilo Mello.
A lavagem ainda foi proibida na década de 30, quando Juracy Magalhães era interventor do estado, e após a II Guerra Mundial. O preconceito era disfarçado pela tentativa de “purificar” a celebração. As baianas, no entanto, nunca deixaram de levar seu brilho para a festa, mesmo com as portas do templo permanecendo fechadas.

Conheça as baianas que fazem a Lavagem do Bonfim acontecer há mais de 50 anos
Uma semana antes do dia mais importante do ano, a roupa que Marta Barbosa vai usar e as folhas para fazer o banho de ervas já estão compradas. Com 52 anos, a baiana de acarajé participa da lavagem da parte de fora da Basílica do Senhor do Bonfim há pelo menos 30 anos, mesmo assim, não esconde a ansiedade nos dias que antecedem a festa. “Não vejo a hora de chegar quinta-feira”, admite.
Para quem acompanha o festejo de longe, pela televisão, pode achar que a festa se repete da mesma forma todos os anos. Quem tem fé percorre os oito quilômetros que separam a Basílica Nossa Senhora da Conceição da Praia da Colina Sagrada, no Bonfim, a pé. Mas quem faz a festa acontecer ano a ano sente uma emoção inexplicável cada vez que a quinta-feira que antecede o segundo domingo após o Dia de Reis se aproxima.

“Tem a emoção de repetir o que fazemos todos os anos. Eu participo desde mocinha e sempre é um sentimento diferente”, conta Marta Barbosa. Enquanto o dia não chega, a baiana prepara a indumentária que usará no dia. “A que eu vou usar já está passada e pendurada. Tem que ser branca e prata, como manda a tradição”, diz. A vestimenta completa chega a custar R$1,2 mil.
Para o banho de amaci, que benze os devotos que chegam a Basílica do Senhor do Bonfim, são usadas ervas de todos os tipos. Arruda, acaçá, manjericão e patchouli formam a mistura que as baianas carregam durante o cortejo. O frasco de alfazema também é pré-requisito importantíssimo.
Claudina Silva Souza, 72, já cumpriu o trajeto da procissão durante muitos anos. Hoje em dia, coordena um grupo de baianas que participam do festejo. Cada uma ganha, em média, R$ 200 para acompanhar políticos no cortejo. Em anos de eleições municipais, como neste ano, a demanda pelo serviço fica ainda maior. E é preciso estar atenta para não ter nenhum problema.
“Já aconteceu de algumas delas saírem no meio do cortejo e participar de outro grupo. Aí, no final do dia, recebem pelos dois. Nosso trabalho é cuidar de tudo para que não tenha confusão”, diz Claudina, que faz parte da Associação Nacional das Baianas de Acarajé (Abam).
Entre as baianas, estão aquelas praticantes das religiões de matriz africana e outras que não. Marta Barbosa, por exemplo, se considera "católica não praticante, mas com um pé no dendê". Isso porque os pais eram do candomblé. “O importante é ter respeito por todas as religiões, isso é o que importa de verdade na Festa do Senhor do Bonfim”, resume.
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* Publicado por N.R. Texto de Maysa Polcri, do Jornal Correio*. Fotos: Arquivo/CORREIO, Elias Dantas/Alô Alô Bahia, Divulgação e Paula Fróes/GOVBA.
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