'Salvador é um dos lugares mais fascinantes do mundo': Vik Muniz fala de sua relação com a cidade

Cidadão do mundo, o artista plástico paulista Vik Muniz tem um lugar para chamar de seu na Bahia, mais precisamente uma casa em Salvador, no Santo Antônio Além do Carmo, para onde retorna sempre que arruma um espaço em sua agenda, dividida entre Nova York, Europa, África, Índia e tantos outros cantos do planeta.

De passagem pela cidade na companhia da mulher, a produtora Malu Barretto, para ficar “uma semaninha só, matar as saudades, ver como estão as coisas, dar uma volta de barco, encontrar os amigos e botar as coisas um pouco em dia”, Vik concedeu a entrevista a seguir com exclusividade para o portal Alô Alô Bahia, na qual falou de sua relação de amor por Salvador e de projetos que estão para acontecer. Confira.

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Alô Alô Bahia: Você tem uma relação muito estreita com a Bahia. Desde quando?

Vik Muniz:
 Essa relação já vem desde 1999. Eu tava vivendo muitos anos fora [do país], passei a maior parte da minha vida nos Estados Unidos, inclusive eu sou americano também. Saí do país como um menino pobre, fiz uma carreira lá fora e quando eu chegava no lado um pouco mais glamuroso na coisa do mundo da arte, não compatibilizava com aquela pessoa que eu tinha deixado aqui. E eu fui descobrindo aos poucos uma maneira de me reintegrar com a minha cultura. É sempre muito importante fazer as pazes com o seu passado. E foi um convite do Cesare de la Rocca, com o Projeto Axé, que deu início à essa história minha com o Brasil. Ele é extremamente responsável por isso. Vim trazido por ele para participar de uma exposição no Solar do Unhão, que chamava O Silêncio da Terra (Quiet of the Land), com artistas internacionais e brasileiros. E eu vim como internacional, na verdade. A coisa era para trabalhar com crianças de rua, realizando um projeto a ser exposto no ano seguinte. Essa temporada em Salvador mudou a minha vida.
 
AAB: Como foi esse primeiro contato com Salvador?

VM:
 Eu vim pra ficar três semanas e fiquei quatro meses, me apaixonei pela cidade e eu encontrei aqui um Brasil que era o que eu queria. Era o Brasil de verdade. Era o Brasil multifacetado, diverso, preto, branco e pobre também. Mas era uma coisa de pobres sofisticados. Uma cidade que tem uma ideia de pertencimento cultural inigualável. Não conheço nenhum outro lugar no planeta em que as pessoas são tão donas da própria cultura. A gente não vê isso em São Paulo, e eu sou de São Paulo, ou mesmo no Rio de Janeiro.
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AAB: Você criou laços nessas vivências?

VM:
 Comecei a ter relações de amizade aqui que são muito longevas. Foi durando, durando, durando... venho quase que anualmente para Salvador desde então. E sempre tinha uma vontade muito grande de ter uma casa no Carmo. Isso já há vinte anos, essa vontade. Nunca aconteceu por uma razão ou outra, até eu começar a vir com mais frequência com Malu [Barretto], minha mulher, que é outra apaixonada pela cidade. Então a gente decidiu comprar essa casinha. Foi no caminho do aeroporto que a gente comprou. Fomos visitar um amigo nosso, Pedro Tourinho, e tinha uma casa vendendo ao lado da gente. Fomos ver e pensamos: ‘Ah, cara! A gente vai ser vizinho do Pedro Tourinho e do Paulo [Vaz], que é o dono do Cafelier. Perfeito!’. Na sequência, fomos nos envolvendo: eu trouxe o barco que eu fiz na pandemia, fiz um projeto na Feira de São Joaquim, que é também uma maneira de ter mais desculpas pra vir mais pra cá e é muito divertido, muito legal. Eu fiz não pensando nesse contexto de arte internacional, mas em arte no lugar que tem que estar. Fiz para as pessoas que vão ali, muita gente em Salvador vai até ali. 
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AAB: E que entrou, de fato, na vida da Feira. Eu vou em São Joaquim com frequência e um dia eu cheguei lá e perguntei: “Fica onde?”. “Ah! É de Vik? Fica ali...”. Eles sabem o que é. 

VM:
 Sabem e ainda me cobram: 'E aí? Quando será a próxima exposição?'. A história mais legal que escutei foi a de um rapaz que conheci lá, um historiador da Feira. A gente trocou telefones e um dia ele me ligou: ‘Vik, você não vai acreditar! Eu tava aqui, agora, e chegou uma senhora, acho que está hospedada no Fera [Palace Hotel]. Ela veio com duas filhas e estava um pouco assustada, veio de São Paulo. Meio acanhada, perguntou para um senhor que estava com duas facas enormes, bebendo cerveja na frente da galeria: 'Aqui que é o projeto de arte do Vik?' E o moço falou pra ela: 'o projeto é do Vik Muniz, mas o artista é o Ernesto Neto, que é um carioca, e essa obra aqui é sobre a causa indígena. Todos os materiais que a senhora está vendo aí são daqui da feira mesmo, mas, de acordo com a ideia do artista, se tornou uma obra de arte’. Isso é um cara da Feira falando para uma mulher de São Paulo. É lindo! O cara é um peixeiro explicando para uma senhora da cidade o que é arte contemporânea. Isso é maravilhoso. É impagável. Essa ligação. Pensei: 'vale a pena continuar fazendo', porque é isso o que a gente quer fazer, sabe?
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AAB: Você tem outros projetos em mente? Tem pensado em outras coisas relacionadas a Salvador? 

VM:
 Eu estou arrumando ‘sarna pra me coçar’ aqui (risos). E a gente tem muitas amizades, então estamos sempre bolando coisas. Tenho amizade com Ubiratan Marques, da Orquestra Afrosinfônica. A gente está fazendo um projeto juntos, que ainda não tem muita forma, mas está começando. Tem um parceiro de vinte anos, que é o [artista plástico] Alberto Pitta, e a gente está sempre aprontando alguma coisa. 
 
AAB: O livro dele está fantástico! 

VM: 
O livro dele [Alberto Pitta], fui eu quem mexeu com o Pedro Corrêa do Lago para a gente produzir... Tem um livro muito legal também, que é do [antiquário] Itamar Musse, que está saindo, sobre a Florinda [Anna do Nascimento] e a Joias de Crioula, com uma perspectiva um pouco mais multifacetada, mais abrangente, muito lindo, sabe? 
 
AAB: Você tem esse outro lado de realizar também, né?  

VM:
 Eu gosto de me meter em coisas. Eu faço arte com todo tipo de material, né? Lixo, diamante, coisa grande, coisa pequena, mas eu acredito que o material de verdade é a experiência. Você tem que se jogar. A gente só vive uma vez, né? Então, quanto mais tipos de vida diferentes você tenha, melhor. E eu acho que quando você é artista, você tem o privilégio de poder viver várias vidas. Num dia, você está em Salvador, no outro em Madri, no outro em Tóquio vivendo experiências distintas. Eu acho que a intensidade dessas experiências, a maneira como você se engaja faz a diferença. Eu estava conversando com uma amiga aqui, agora, e falei: ‘Pô, eu vou em qualquer lugar. Eu faço de um limão, uma limonada mesmo. Se a festa estiver chata, eu faço ficar legal. Eu acho que a gente tem se entregar para as coisas e fazer o melhor possível. 
 
AAB: E aqui em Salvador, você é um realizador?

VM:
 Eu acho incrível como você não tem muito a adicionar em Salvador. Aqui eu me sinto um grande passageiro de um trem que já está andando. E é muito legal que seja assim. Porque, dentro do calendário da cidade, em janeiro, por exemplo, o melhor lugar do mundo para se passar, para mim, é em Salvador. Quando os amigos vêm para aqui antes do Carnaval, têm uma expectativa, uma coisa linda. Tem a festa da Beleza Negra do Ilê. Tem tanta coisa legal acontecendo! E é um mundo de verdade, sabe? Principalmente, assim, quando a gente tem essas pautas que vem à tona, como a da diversidade sexual, de gênero, do racismo. Salvador é uma cidade muito rica em experiência. Você vive dentro de uma confusão em que todos esses contextos de argumentos estão muito presentes, são relevantes porque você conhece essas coisas no cotidiano. 
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AAB: Isso traz alguma coisa para a sua arte?

VM: 
Eu acho que inspira muito.  A gente tem que entender que o mundo é pobre. Eu viajo muito. Vou para a África, Bangladesh. O mundo não é o bolso de afluência sócio-econômica-cultural vendido nas revistas e sites. Nem é o que as pessoas estão vendendo nos seus perfis de Instagram. Tudo é pobre. O mundo é deficiente de diversas maneiras. E é diverso, cheio de injustiças e belezas ao mesmo tempo.
 
AAB: Enquanto artista, isso te inspira de alguma forma? 

VM: 
Eu falo sempre que a criatividade é a energia resultante da fricção entre necessidade e possibilidade. Se você não tem necessidade, todo processo criativo será falho, de uma certa forma. Precisa de precisar. Aquele estereótipo do artista pobre, acho que aquilo la boème, o artista que está sofrendo, tem um sentido interessante, porque você vê muita coisa nascendo onde ela tem que nascer, onde há uma necessidade de aquilo acontecer. E sempre falo: Salvador é um lugar que tem todos esses defeitos socioeconômicos, mas tem todas as melhores soluções pra esses defeitos. E tem a gente mais orgulhosa da sua cultura. Eu acho um lugar lindo! É um dos poucos lugares onde você vai a uma festa cívica (o Dois de Julho, por exemplo) e as pessoas adoram ver uma fanfarra. É lindo! Tem até um orgulho. Aqui em Salvador, o dia da Independência [da Bahia] é um dia que você tem orgulho, se sente patriota. Uma independência verdadeira. Não é o cara que parou pra fazer cocô na beira do rio Ipiranga e levantou uma espada. Vai ver se era uma espada ou se era um galho, ninguém sabe. Aqui não! Aqui foi lutado, os caras tiveram que brigar, têm histórias boas a respeito, são miscigenadas, ricas, grossas. Eu adoro Salvador. Acho que é um dos lugares mais fascinantes do mundo do ponto de vista social também. As pessoas são interessantes. Adoro estar aqui! 
 
AAB: Por que você está em Salvador agora?

VM: 
A gente está desde sexta-feira e vai embora na quarta (7). Viemos para matar as saudades, ver como estão as coisas, dar uma volta de barco, ver os amigos e botar as coisas um pouco em dia. Voltaremos em outubro para abrir a exposição da [artista plástica] Maria Nepomuceno na [Galeria] Lugar Comum. Já estamos combinando de fazer o jantar, até, com a [chef do Di Janela] Nara [Amaral].

Foto: Elias Dantas, Alô Alô Bahia e Xico Diniz (ambiente da casa). Também estamos no Instagram (@sitealoalobahia), Twitter (@Aloalo_Bahia) e Google Notícias.

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