4 Jul 2023
Lívia Sant’Anna Vaz: “Precisamos transformar indignação em ação”
Há oito anos como Promotora de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa, Defesa das Comunidades Tradicionais e das Cotas Raciais do MP-BA, está entre as 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo e tem sua trajetória jurídica marcada pela atuação em relação a temas como feminicídio, intolerância religiosa, combate ao racismo e ao sexismo, e na luta para que as mulheres negras tenham amplo acesso à justiça e a espaços de poder e decisão.
Lívia Sant’Anna Vaz concedeu a entrevista a seguir ao Alô Alô Bahia, na qual reflete sobre sua atuação, desafios, vida em família, o papel das pessoas na sociedade no combate às desigualdades, entre outros temas. Confira:
Alô Alô Bahia: Você é uma das poucas promotoras de justiça negras no país. Quando olha para quando começou até hoje, percebe uma evolução ou a conquista desse espaço por outras mulheres ainda segue árdua? Por que?
Lívia Sant’Anna Vaz: Costumo dizer que ser uma mulher negra no sistema de justiça é ser a exceção que confirma a regra de sub-representação, quase ausência dessas mulheres em espaços de poder e decisão no Brasil. Se a conquista desses espaços é árdua para as mulheres, para as mulheres negras os obstáculos impostos pelo racismo e pelo sexismo são ainda mais severos. Evoluímos muito pouco se pensarmos que mulheres negras são o maior segmento social do Brasil e somam 28% da população brasileira, o que as torna também, em termos proporcionais, o grupo social mais sub-representado, quer nos cargos políticos quer nos órgãos do sistema de justiça. O Ministério Público não é uma exceção a essa regra. O Perfil Étnico-Racial publicado pelo Conselho Nacional do Ministério Público, em parceria com o IPEA, no último dia 3 de julho, revela que apenas 15,8% dos membros do Ministério Público brasileiro são pessoas negras. sendo 10,4% homens negros e apenas 5,4% mulheres negras. Já as pessoas brancas somam 81,9% dos membros da instituição, dos quais 32,8% são mulheres e 49,2%, homens.
AAB: Combate à intolerância religiosa, à violência de gênero e ao racismo estrutural e a busca pelo acesso das minorias a direitos fundamentais são bandeiras que você defende há anos. Houve algum momento em que pensou em desistir ou percebeu um retrocesso?
LSV: Eu não chamaria de bandeiras, mas de compromissos com a coletividade, de responsabilidades democráticas, que transcendem minha atuação funcional e são verdadeiras missões de vida. Confesso que há momentos de desesperança e cansaço diante da perpetuação e rearranjos constantes desses sistemas de opressão que, de um lado, seguem reproduzindo violências contra grupos vulnerabilizados, de outro, mantendo privilégios de grupos hegemônicos. Nos últimos tempos, sobretudo nos últimos quatro anos, testemunhamos inúmeros e graves retrocessos na promoção de direitos humanos no Brasil, atingindo especialmente os grupos mais vulnerabilizados. Para mim, esse processo que vivenciamos – e ainda temos vivenciado – é uma verdadeira manifestação de ódio à Democracia e a seus efeitos de inclusão desses grupos vulnerabilizados: mulheres, pessoas negras, quilombolas, indígenas, comunidade LGBTQIAP+, entre outros. Precisamos permanecer atentas/os, pois esse ódio não foi inteiramente dissipado e os ataques persistem das mais variadas formas. Apesar de todas as dificuldades, para mim, desistir nunca foi uma opção. Desistir seria abdicar da responsabilidade de garantir uma sociedade efetivamente democrática para futuras gerações; seria deixar de acreditar na possibilidade de construirmos coletivamente uma justiça pluriversal.
AAB: Você é mãe de duas filhas, Isadora e Iara. Em que medida a responsabilidade de educar duas pessoas pesa em suas decisões no dia a dia?
LSV: Existe um ditado africano que diz que para criar uma criança é preciso toda uma comunidade. A carta mandinga de 1235 – que, em geral, desconhecemos por conta do epistemicídio – trazia como um de seus princípios a responsabilidade coletiva pela criação e educação das crianças. Mas a tendência, na nossa sociedade sexista e patriarcal, é imputar prioritariamente ou, até mesmo, exclusivamente às mães a responsabilidade pelos cuidados e pela educação das crianças, o que faz com que mulheres tenham que enfrentar mais obstáculos nas suas relações sociais e profissionais do que os homens. Tento exercer uma maternidade sem culpa, o que não é nada fácil, diante dos preconceitos e exigências de uma sociedade que estabelecem cobranças e questionam atitudes de mulheres a partir de padrões sexistas. Não é comum que homens sejam questionados sobre suas escolhas pessoais e profissionais pelo fato de serem pais. Já as mulheres são cotidianamente confrontadas com perguntas como: “com quem você vai deixar suas/seus filhas?” ou “e sua família concorda com essa decisão?”. Então, sim, o fato de ser mãe de duas meninas afeta as minhas decisões, não apenas com foco na criação e educação delas, mas também de outras crianças, já que me compreendendo como alguém que tem responsabilidades coletivas para além da minha própria família. Assim, penso que todas as pessoas adultas que se comprometem com as gerações futuras devem ter, em maior ou menor medida, seus comportamentos e decisões afetadas pela missão de criar e educar nossas crianças, ainda que não tenham filhas/os biológicas/os.
AAB: É possível termos um país mais justo? Como as pessoas, em suas atuações individuais, podem contribuir para uma sociedade menos desigual, na sua opinião?
LSV: Eu tenho dito que precisamos transformar indignação em ação. Muitas pessoas se dizem indignadas com as injustiças, com as desigualdades, mas nada fazem de concreto para mudar a realidade. As pessoas se preocupam apenas com o seu próprio umbigo e com o seu núcleo familiar. Na verdade, temos uma visão muito limitada e individualista do que é ser uma pessoa bem-sucedida; contentamo-nos com uma carreira de sucesso e em acumular bens. Mas é apenas esse mesmo o nosso papel? O que fazemos para construir uma sociedade mais justa? É preciso, então, transcender o mero discurso e partir para a prática. Se observarmos melhor o mundo ao nosso redor, seremos capazes de compreender como podemos, cada um/a a partir de suas condições sociais/profissionais afetar positivamente a vida de outras pessoas. Essas atitudes podem assumir diferentes dimensões. Por exemplo, priorizar empreendedoras/es negras/os quando for consumir produtos e serviços; estimular e apoiar o acesso à educação para quem realiza serviços doméstico em sua casa; questionar a ausência de equidade de raça e gênero na instituição em que atua etc.
AAB: O MIPAD (Most Influential People of African Descent - Pessoas de Descendência Africana Mais Influentes do Mundo), entidade chancelada pela ONU, defende, através de carta aberta ao presidente Lula, sua indicação ao Supremo Tribunal Federal, assim como a organização não-governamental Educafro, que incluiu sua indicação em uma lista de 10 pessoas negras como sugestão para a vaga da ministra Rosa Weber, que se aposentará em outubro. Como você recebeu estas notícias e qual a importância de uma nomeação como esta do ponto de vista dos valores que você prega?
LSV: Recebo essas notícias como um desafio de abrir caminhos para a construção de uma justiça pluriversal. É um lugar no qual nunca me imaginei, até ser provocada pelos movimentos sociais sobre a importância de uma mulher negra comprometida com a democracia e com trajetória de proteção dos direitos humanos nesse espaço. Num Estado Democrático de Direito, todas as instituições, sobretudo as públicas, deveriam refletir minimamente a diversidade da população brasileira. Mas isso não acontece no Brasil e o sistema de justiça não é uma exceção. Nunca tivemos uma mulher negra como Ministra do Supremo Tribunal Federal nos seus mais de 130 de instituição. Ouço as pessoas dizerem que raça e gênero não importam para um cargo como esse. Se não importa mesmo, por que quase que exclusivamente homens brancos mereceram ocupar esse lugar ao longo da história? Dizem: “o que importa é a competência!” Então, não temos mulheres negras com competência para assumir esse lugar? As pessoas não notam como esse tipo de discurso reproduz racismo e sexismo. Precisamos de uma Justiça que tenha a cara do povo brasileiro, que entenda as demandas por direitos que surgem dos grupos mais vulnerabilizados e, para isso, todos os grupos precisam estar representados no sistema de justiça, garantindo que outras vivências e perspectivas – e não apenas a de homens brancos – sejam consideradas nas decisões.
AAB: Você construiu uma bem-sucedida carreira acadêmica e é autora de diversos livros que estimulam o pensamento crítico. Quais os lugares da educação e do conhecimento na construção do indivíduo?
LSV: A educação e o acesso a conhecimentos (no plural mesmo) é fundamental para a construção do indivíduo. O conhecimento liberta! Mas aqui não me refiro apenas ao conhecimento acadêmico, dito científico, mas a outros tantos saberes que são adquiridos, por exemplo, em comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas, comunidades de marisqueiras, de matriz africana e que são ignoradas ou mesmo apagadas numa sociedade estruturalmente racista.
AAB: Em suas palestras, você provoca o público ao abordar temas necessários, como racismo institucional, e questionar falhas no sistema de Justiça. Esses debates também te trazem reflexões?
LSV: Sempre. Eu sempre aprendo muito nesses debates que são, para mim, uma troca. Não aprendemos se não estamos abertas/os a escutar outras opiniões e perspectivas diferentes das nossas. Sempre digo que nós, integrantes do sistema de justiça, somos servidoras/es públicas/os. E, então, questiono: como servir a alguém que você não conhece e que você não escuta?
AAB: Você é uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, de acordo com o MIPAD. Recebeu a homenagem por conta do trabalho de combate ao racismo e à intolerância religiosa que vem desenvolvendo junto ao MP da Bahia. Qual a reflexão e o impacto que esta conquista te trouxe?
LSV: Recebo essa homenagem não como uma honraria individual, mas como o reconhecimento da importância do trabalho realizado no enfrentamento ao racismo e na promoção da igualdade racial. E se se trata de um trabalho reconhecido, espera-se que ele possa ser difundido, inspirando outras pessoas a assumirem o compromisso de serem antirracistas, não apenas em seus ambientes profissionais, mas em todos os âmbitos de suas vidas.
*Com produção de João Victor Moraes. Fotos: Webster Santana e Patricia Souza
Leia mais notícias na aba Notas. Acompanhe o Alô Alô Bahia no TikTok. Siga o Alô Alô Bahia no Google News e receba alertas de seus assuntos favoritos. Siga o Insta @sitealoalobahia e o Twitter @AloAlo_Bahia.