8 Sep 2022
Emanoel Araújo: as formas, as letras e o artista

Emanoel Alves Araújo nasceu em Santo Amaro da Purificação, cidade no Recôncavo da Bahia berço de outros tantos brasileiros ilustres, em 15 de novembro de 1940, data imortalizada pela Proclamação da República, em 1889. Faleceu na data alusiva à Independência do Brasil.
Vindo de uma família inserida na ourivesaria, o jovem Emanoel, desde cedo, mostrou interesse nas artes. Seu pai era ourives, sabedor de técnicas e tradições de peso, saberes que estavam presentes nas ricas cidades do recôncavo, lugares de opulência e violências marcadas pelos séculos de escravidão. De Santo Amaro foi para Salvador, estudou na Escola de Belas Artes da UFBA. Fez gravuras, gravuras em cartazes, com a temática dos gatos e cenários da Bahia, xilogravuras, pintou telas, esculturas e retratou nos mais variados suportes São Paulo, o Brasil e uma geometria afro-brasileira.
Foi premiado, em 1966, na II Exposição Jovem de Gravura Nacional, no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo; ganhou medalha de ouro na III Bienal Gráfica de Florença na Itália; foi premiado pela Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA); ganhou o Prêmio Clarival do Prado Valladares e recebeu as medalhas Zumbi dos Palmares, em Salvador, e Tarsila do Amaral, em São Paulo, lugar onde vivia há décadas. E em 2009 foi condecorado com a Ordem do Ipiranga pelo governador de São Paulo, na época, José Serra.
No estado natal, a Bahia, foi diretor, na década de 1980, do Museu de Arte da Bahia (MAB), momento marcante na instituição e com histórias memoráveis com o governador Antônio Carlos Magalhães. Foi um dos nomes na saga do Museu Rodin na Bahia. Participou de mais 200 exposições, entre individuais e coletivas. Esteve à frente da Pinacoteca de São Paulo, sendo responsável pelo renascimento da instituição, enfrentando o preconceito na época por ser nordestino, baiano e negro. Também foi Secretário Municipal da Cultura (SP), por 100 dias, deixando o cargo por vontade própria.
No exterior, lecionou Artes Gráficas e Escultura no New York University – College of Arts and Sciences, e concebeu o Museu Afro-Brasil, em São Paulo, espaço que por si só já é um exemplo de força e resistência em um prédio símbolo do modernismo.
Lembrado por uma produção artística marcante, conseguiu evidenciar um jeito particular de criar e se mostrar, sempre com uma personalidade de enfrentamento, aliada a um forte poder de articulação. Em sua última entrevista, de duas participações no Programa Roda Viva (TV Cultura), sendo entrevistado por Andresa Boni, Silvia Almeida, Luiz Antonio Pilar, Juliana Gonçalves, Kauê Lopes, entre outros, cunhou a seguinte frase:
“[...] O Brasil não é um país de sussurros, é um país onde se precisa gritar” (Emanoel Araújo. No programa Roda Viva. 2017).
A forma - Artista múltiplo, dominou diferentes técnicas em distintos suportes, fez a madeira ganhar contornos geométricos ou sinuosos em relevos intrigantes. Com maestria, usou da mesma madeira para fazer a fôrma de xilogravuras, esculturas e tantas outras obras. Pintou de branco, preto, vermelho, azul e laranja suas criações no exercício de demiurgo do qual ocupava. Foi do realismo suave ao abstrato para dar forma ao seu modo de sentir, viver e enfrentar as realidades ao longo de mais de 80 anos de vida. Percorreu caminhos em uma Bahia e Brasil que, mesmo no século XX, carregava em seus presentes um arcaísmo como projeto, especialmente no que toca as questões raciais e da sexualidade. Viveu e enfrentou um Brasil carregado de passados onde ele ajudou a traçar caminhos para a valorização da arte afro-brasileira, cultura e de novos olhares sobre a História.
As Letras - O livro “A Mão Afro-Brasileira: Significado da Contribuição Artística e Histórica” (publicado em 1988) é uma das mais significativas obras que o artista, pesquisador, curador e escritor organizou. O próprio Emanoel dizia que se sentia melhor escrevendo do que falando. Na obra, foi apresentado a um rico panorama da contribuição de artistas afro-brasileiros ao longo da história do Brasil. O trabalho contou com primorosas pesquisas, lançando luz sobre os silêncios existentes no tocante à produção artística negra no país, do Barroco ao Moderno. Até hoje, é uma das publicações mais lembradas e referência da área. Outras tantas publicações fizeram parte da trajetória de Emanoel, sempre evidenciando suas múltiplas atuações, criando também em letras, suas artes.
Caminhos em um 2 de Julho - Ao longo da maior parte da sua vida, ele registrou e evidenciou uma arte afro-brasileira, não só em suas obras, como mostrando outras tantas produções de diversos artistas ao longo do tempo. O Museu Afro-Brasil já nasceu como um farol de resistência e um espelho, como o próprio Emanoel disse em diversos momentos, de toda uma população brasileira. O desafio como gestor cultural, pesquisador e artista era também o de vencer os esquecimentos, apresentar novas perspectivas na produção de memórias e histórias silenciadas. De enfrentar a desigualdade apresentada de forma estruturante, o racismo e posicionamentos retrógrados. O Museu Afro Brasil foi, portanto, uma utopia realizada, lembrou o artista em uma das entrevistas no Roda Viva.
Em nosso último encontro no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), trocamos alguns minutos de palavras sobre a exposição do Bicentenário da Independência, onde a Bahia, de forma mais que justa, ocuparia lugar de evidência. Com um leve sorriso enigmático, e apertando os olhos, Emanoel disse: “[...] aquele ali (apontando para o quadro na parede) é o artista Franco Velasco. Aquele, se não me engano, é José Joaquim da Rocha [...]”, expoentes das artes no século XVIII e XIX. Nesse momento, nos observavam em silêncio dezenas de quadros, maioria de homens brancos e bigodudos, no panteão do IGHB. Naquele mesmo lugar, o artista discorria sobre a invisibilidade, silenciamentos e importância de destacar o processo de independência da Bahia e a atuação de negros nas artes baianas ao longo dos séculos.
Continuamos a conversa falando sobre a exposição do Bicentenário, que Emanoel estava responsável, e depois seguimos para uma reunião com o presidente do IGHB Joaci Góes. Ainda conversamos sobra a importância do clássico “A Mão Afro-Brasileira” e depois analisamos outras obras de partícipes da Independência da Bahia. Emanoel se despediu e seguiu no trajeto do desfile do 2 de Julho em Salvador. Foi a sua última participação na tradicional data cívica baiana e brasileira.
Ao longo de sua carreira, ele foi o artista que, com suas formas, letras e pincel riscou de forma indelével uma trajetória de enfrentamento, articulação e criação, evidenciando a arte afro-brasileira. Protagonista com um perfil forte, rígido, polêmico, altivo, assim como suas esculturas hoje conhecidas no mundo todo, deixou uma história que não pode ser esquecida, deve ser sempre lembrada, ainda mais em um país de tantos desafios como o Brasil. O artista que deu forma a tantas obras ajudou também a dar forma a um Brasil que passou a olhar para arte afro-brasileira com o destaque que deve ter.
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