O tempo e a Bahia de Alberto Valença

Meditação. Alberto Valença. 1923. Coleção Vera e Antônio Alberto Valença. 



Entre a penumbra, em meditação com os resquícios de passados e a espiritualidade, encontra-se de forma solitária um monge, cabisbaixo segurando um livro. Pela porta entram os raios de sol que fazem alvas as velhas páginas amareladas. Em volta um uma sala com mobiliários coloniais em jacarandá, pinturas religiosas, crucifixos e talhas barrocas da mais expressiva beleza. Esse é o cenário de uma das inúmeras telas (Meditação. 1923) do pintor baiano Alberto Valença, mestre do sensível, artista de recantos da cidade e pintor do inconsciente das paisagens.

Valença (Alagoinhas/BA 1890 – Salvador/BA, 1983) foi um homem do século XX que acompanhou de forma atuante muitas das transformações no espaço urbano / social da Bahia em suas pinturas. Desde sua saída do interior do estado até sua consagração como mestre, conseguiu capturar em suas telas nuances que estão cheios de tempos, retratos quase que fieis de como era Salvador, suas ruas e arrebaldes, em pinturas que trazem além de uma seleção de uma época, a emoção que o artista imprimiu em tinta.

O jovem Alberto foi representante da tradicional Escola Baiana de Pintura e aluno de outro grande nome das artes, Manuel Lopes Rodrigues, um dos mais atuantes artistas inserido em um momento de construção do ideário simbólico artístico da República, e as tentativas de “formação das almas”, como lembrou o historiador José Murilo de Carvalho em seu conhecido livro. Valença Foi o último grande mestre das paisagens na Bahia no século XX. Em 1908 matriculou-se (com ajuda de Lopes Rodrigues) na Escola de Belas Artes, que funcionava no Solar Jonathas Abbott no Centro de Salvador, concluindo o curso de pintura em 1914. Na vida profissional conheceu diversos outros nomes das artes, exemplo do pintor Presciliano Silva (1883 – 1965) (que será tema de outro texto nessa coluna), e também esteve próximo do engenheiro Américo Simas (1883-1965). Em vida realizou exposições, viagens, foi professor do Ginásio da Bahia, Consultor do Museu de Arte da Bahia, e reconhecido por suas obras com premiações e medalhas tornando-se professor emérito da UFBA em 1961. Continuou produzindo nas décadas seguintes até o falecimento em 1983, com 93 anos. 


A Cidade

Algumas das pinturas de Valença mostram Salvador ainda carregadas de um ar de passado, em uma paleta de cores evidenciando o urbano, em camadas de impressionismo, com poucas pessoas ou cenários sem ninguém, onde a cidade é a protagonista. Algumas das obras testemunham o que se perdeu com o tempo, como os antigos Trapiches, Teatro São João, ruas, ladeiras com luminárias solitárias, tudo transformado pela sanha da modernidade ou simplesmente demolido nas décadas seguintes. Entre os anos de 1930 - 60 a Cidade da Bahia ainda carregava muito do século XIX e início do XX, dando aos poucos passos para uma modernidade urbana, com novas construções e avenidas, que se acentuariam décadas depois. Nas telas de Valença o que domina são as paisagens com os casarios, torres de igrejas e interiores de espaços, como os conventos, que estabelecem uma ponte com o passado. Entre muitas de suas obras destacam-se as telas que mostram o Convento do Desterro, Igreja do Passo, o interior do Convento de São Francisco de Assis e do Convento do Carmo, Monte Serrat e outros cantos da cidade imersos em uma poesia não mais vista em Salvador.


Ladeira da Montanha e Teatro São João. Alberto Valença. 1918. Museu Carlos Costa Pinto


Claustro do Convento do Carmo. Aberto Valença. 1919. Coleção Marose e Ricardo Wildberger



Porto da Barra. Alberto Valença. 1940. Coleção Ieda e Gilberto Sá.



As Paisagens

A partir de 1913 Valença começou a pintar paisagens ao ar livre em Salvador. Nos anos seguintes uma série de marinas e outras belas paisagens, algumas com um ar melancólico, destacaram contextos que hoje só podem se vistos nas telas do pintor ou em fotografias mostrando os arrebaldes, praias e coqueiros que “pincelavam” o litoral soteropolitano. Em algumas telas saveiros surgem no encontro de mar e terra como senhores das águas. Valença foi testemunha de uma época, décadas de 30 e 40, em que as embarcações ainda eram importantes na Baía de Todos os Santos, e também acompanhou em vida a decadência dos saveiros e seu rareamento pós-meados do século XX. 




Baía de Todos os Santos. Alberto Valença. 1940. Coleção Particular.


Nuances de história

Toda obra de arte está carregada de histórias. Cada pincelada tem um pouquinho da intenção do artista em seu tempo em mostrar algo e captura, no mesmo trabalho, seleções de um cenário escolhido. É uma delicada composição entre o tempo e projeção de como se vê esse tempo. O tempo e os ares que Valença pintou de uma Bahia, e a cidade do Salvador, se perderam gradualmente nas camadas de cidade que surgiram no século XX. Hoje suas obras tornaram-se testemunhas silenciosas de cenas de uma Bahia antiga, com belas paisagens em contato com mar, que possibilitam um vislumbre de toda a poesia que Alberto Valença nos legou.

Para os apreciadores das artes e da história baiana recomendo as luzes, sombras e poesia na bela exposição no Museu de Arte da Bahia e no Carlos Costa Pinto, com curadoria do mestre Luiz Freire, sobre Valença. Aproveito para indicar a leitura do romance biográfico sobre o artista da Vera Spínola, e o trabalho mais antigo escrito por Clarival do Prado Valladares de 1980. Aproveitem e contemplem também o site: https://albertovalenca.com.br/.

Boa leitura e boa visita na exposição.
 


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