Consciência Negra: destaques em suas áreas, profissionais negros falam sobre a data e suas trajetórias

José Mion é jornalista, assessor de imprensa, apaixonado por Gastronomia e escreve para o Alô Alô Bahia.

Em um país cuja população negra representa 56% do seu povo é de se espantar que o Dia da Consciência Negra, neste domingo (20), não seja uma data de maior destaque, como um feriado nacional, por exemplo. Mais espantoso ainda é que na Bahia e em Salvador, estado e cidade com cerca de 80% das populações representadas por negros, a data sequer seja um feriado, como em estados como Alagoas e em capitais como São Paulo e Goiânia.
 
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“O 20 de novembro é para ser lembrado como um dia de renovação de energias e de esperança por novas oportunidades para apresentarmos as nossas potencialidades. O que queremos é viver e ser ouvidos. Fomos silenciados e tivemos negligenciado nosso direito de existir. Por isso, ainda hoje o grito é por liberdade”, defende o agitador cultural e DJ Uran Rodrigues, à frente de projetos como o Baile O Pente, que celebra a diversidade musical e de gênero, sempre com artistas negros em destaque. "Mais do que festas, eventos como 'O Pente' e o 'Afropunk' são movimentos de fortalecimento da estética, identidade e ocupação de espaços. São o local propício para mostrar por meio das vestes e dos nossos cabelos que estamos vivos e alertas”, reflete.
 
Essa ocupação de espaços, principalmente dos dedicados quase que integralmente a pessoas brancas há alguns anos, é uma conquista árdua de profissionais como Luana Assiz. A jornalista, que tem passagens pela Band News, CBN e TVE, diz que sofreu preconceito até chegar à TV Bahia, onde, atualmente, está envolvida em projetos como o Conversa Preta, em múltiplas versões em TV e no digital para o debate de temas que ajudam a construir uma sociedade antirracista e mais igualitária.
 
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"As discriminações que enfrentei são decorrentes do racismo estrutural, que mantém pessoas socialmente lidas como brancas nas melhores posições profissionais e oferece a este grupo as melhores oportunidades. Me vejo no lugar de quem precisa buscar a excelência em tudo para criar oportunidades e aproveitar ao máximo as que surgem, o que tem um custo emocional alto e não evita outros tipos de discriminação racial", revela a também compositora, formada na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
 
Para ela, a TV brasileira está em um caminho interessante de transformação, com a presença negra na telinha cada vez mais forte. Apesar de celebrar, a guarda não pode baixar. "Precisamos avançar na proporcionalidade, quando levamos em conta o percentual de negros representados nas telas. Outro passo necessário é fomentar a presença negra nos postos de decisão dessas equipes", diz, sem deixar de lembrar a importância da data.
 
"O 20 de novembro é uma data para reafirmar a luta antirracista e isso é obrigação da branquitude, que criou o racismo e, portanto, precisa estudar e se implicar nesse movimento", pondera Luana, que reforça a importância do reconhecimento do privilégio branco para a desestruturação da violência contra o negro em diferentes esferas.
 
"Para quem é socialmente branco e não sofre racismo, é importante reconhecer seus privilégios. Não basta se indignar quando uma pessoa negra é insultada. O antirracismo do qual precisamos é a capacidade de se indignar por todas as violências que as pessoas negras sofrem”, diz ela citando a violência econômica, que coloca negros nos piores indicadores sociais e postos de trabalho; a violência policial, que atinge predominantemente corpos negros; a violência estética, que ridiculariza e criminaliza cabelos, traços e identidades; a violência epistêmica, que rejeita as narrativas e saberes ancestrais em campos de produção intelectual; e a violência das instituições de justiça, que ainda são ocupadas predominantemente por homens brancos ricos conservadores.
 
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Nesse contexto mais amplo, torna-se cada vez mais evidente que a estrutura que sustenta o racismo precisa ser quebrada lá de cima, onde está quem comanda. Por isso, foi com felicidade que o jornalista e pesquisador de políticas de direitos humanos Yuri Silva, ativista do movimento negro baiano, celebrou fazer parte da equipe de transição do governo Lula, em Brasília.
 
"Essa indicação é uma oportunidade para contribuir com a formulação de políticas públicas que coloquem no lugar de destaque o tema da igualdade racial. E falar de igualdade racial é falar de direitos e das demandas históricas de 56% da população brasileira", conta Yuri. Para ele, por mais que exista uma pasta focada no tema, este deve ser tratado de maneira mais ampla, sendo relacionado com questões da Educação, Saúde, Justiça, Desenvolvimento Social e outras.
 
"Todas as pessoas precisam ser porta-vozes da agenda política do movimento social negro brasileiro", defende o jornalista, que acredita que cabe a todos buscar esse país mais igualitário, "em que a cor da pele não defina se as pessoas moram melhor ou pior, comem ou não, sobrevivem ou não", segue.
 
HHB1HAu.md.jpgA cor da pele não deve também definir funções e status, como o de chef de cozinha. Numa cidade majoritariamente negra como Salvador, são contados nos dedos os restaurantes comandados por negros. Um deles é o carioca Ícaro Rosa, que há 7 anos escolheu a Bahia como lar, inicialmente com a abertura do Restaurante Jiló em Itacaré e, há três meses, em Salvador.
 
“De fato, a gente precisa ocupar espaços de liderança e de ‘poder’, espaços que a gente coordene, que a gente crie, não onde sejamos mandados, processo que já acontece há mais de 500 anos”, reflete o chef, formado em Gastronomia ainda no Rio de Janeiro.
 
Segundo ele, o negro precisa ser produtor de ideias, que contem uma história e que, mesmo numa versão mais europeia, com técnicas clássicas, a comida deve trazer “nossas influências, nossa história; isso é muito importante”, pondera.
 
Também radicado na Bahia, o arquiteto sergipano Wesley Lemos frequenta um mercado de maioria branca, onde o racismo é bem "sofisticado", muitas vezes imperceptível, segundo ele. Formado em Arquitetura, Design e Arte, há 23 anos com escritório próprio e com equipe distribuída em 3 cidades, ele diz que, aos poucos, quando foi se sentindo pertencente à Bahia, através da capital baiana, é que pôde entender melhor todo o processo estrutural. "Muitas vezes os nossos 'arquitetos negros' são confundidos com outras ocupações dentro da engenharia, arquitetura e design. Isso é visto na invisibilidade na mídia e na comparação de remuneração", reflete.
 
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Para ele, o preconceito vai além, ao não se entender e ao não aceitar a contribuição do negro na história da Arquitetura Brasileira, para além da de mão de obra civil. "Reconhecer Aleijadinho ou Tebas faz parte desse processo antirracista", frisa.
 
"Furei a bolha na minha área e, por muito tempo, creditavam [minha posição] a sorte ou duvidavam da minha capacidade. Credito à força de vontade e à persistência e por ter uma linguagem bem eclética e cosmopolita, que fez com que meus trabalhos alcançassem força comercial", reflete. "Também não sou um preto retinto e isso ainda é uma questão dentro da sociedade, que reafirma o racismo em escalas de colorismo", reclama ele, que é conselheiro da CANES (Coletivos de Arquitetura Negros de Sergipe) e chegou a ser capa, no meio deste ano, da Veja São Paulo, com matéria sobre a Casa Cor.
 
Para Wesley, a quantidade pequena de negros em posição de destaque em sua área passa pela falta de compreensão da importância das políticas públicas de inclusão e acesso às escolas e universidades. Neste sentido, a Educação se mostra uma ferramenta de grande importância, como foi para a advogada baiana Daiesse Jaala, atualmente ocupando o posto de Auditora de Controle Externo e Supervisora da Subsecretaria de Fiscalização e Controle do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, cidade na qual ainda preside a Comissão de Diversidade Racial do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA).
 
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"Nelson Mandela tem uma frase que diz que a educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo. E a educação mudou a minha vida", diz Jaala que credita a ter pais professores de escola pública, que entendiam que a educação era o único caminho para mudar suas trajetórias, seu afinco nos estudos. "Tive oportunidades e ferramentas que não são acessíveis normalmente à população mais pobre", lembra ela, que contou com bolsa para estudar em uma escola particular em Salvador.
 
"Isso me fez viver um processo de grande impacto entre duas realidades completamente distantes e diferentes. Eu não me enxergava naquele lugar, em salas com cerca de 50 alunos e apenas 2 pessoas negras. Era preciso conviver com um cenário com o qual até então eu não tinha contato. Vivenciei preconceitos e humilhação em prol de um processo que me faria chegar no lugar que estou hoje", lembra.
 
Superada essa etapa, o ambiente jurídico não facilitou exatamente a vida da advogada, que lançou recentemente um livro sobre o custo da Educação Pública no Brasil. "Viver o espaço jurídico quase sempre veio acompanhado do processo de sexualização da mulher negra e de ocupar espaços com o peso e a responsabilidade de precisar se provar mil vezes mais", reflete.
 
"Constantemente, em espaços intelectuais, as pessoas se assustam quando leem meu currículo, quase sempre pressupõem que estou em um espaço para servir, que não sou a chefe, que não sou a palestrante, que não sou a 'doutora'. Nada disso importa, mas apenas se pressupõe que o lugar do negro é o de servir", diz Daiesse, reforçando que o fato é facilmente representado em dados e estatísticas, que mostram uma ínfima representação de negros em posições de poder e liderança, tanto na administração pública quanto no setor privado.
 
"É certo que existe um movimento importante na sociedade para promoção da diversidade racial, mas é a inquietude do trabalho de luta e enfrentamento ao racismo que fará esse movimento se manter vivo", avalia a advogada, que acredita que só com o engajamento de todos a população negra atingirá níveis de excelência. "Que o discurso da promoção da equidade e igualdade alcance um sentido material efetivamente verdadeiro", finaliza.
 
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Ela ganha coro da cantora Margareth Menezes, uma das personalidades negras mais influentes do mundo. Segundo a artista, a realidade só vai melhorar quando toda a sociedade entender que o racismo e o preconceito não fazem bem ao Brasil, pela sua dinâmica racial. “A luta por mais espaços de representação e acesso na cultura de modo geral, não apenas na música, e também à educação de qualidade, capacitação profissional e oportunidade em áreas de comando continua demandando muito movimento”, diz Maga.
 
Ainda longe do ideal, ela enxerga uma evolução na conquista de espaços pelo negro, principalmente graças ao desenvolvimento das tecnologias digitais, às redes sociais e às plataformas de streaming. “Se abriu um novo circuito de comunicação e aconteceu uma transformação na maneira de atingir o público, sem tantas barreiras, como acontecia há duas décadas”, avalia.
 
As mudanças tecnológicas na disseminação de produções culturais é, realmente, uma realidade. Um exemplo é o ator Felipe Velozo, atualmente em duas produções da TV Globo (Mar do Sertão e Família Paraíso), uma da Amazon (Eleita) e outra da HBO Max (Vale dos Esquecidos).
 
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"Existe um avanço notório (na presença de negros nas grandes produções audiovisuais), fruto da luta diária travada contra o racismo. Somos muitos, somos diversos e seremos ainda mais. Hoje, temos muito mais protagonismo negro na Teledramaturgia, no Cinema, no Entretenimento e no Jornalismo. Estamos longe de uma equidade, mas ver tanta cara preta na tela é sinal de que avançamos é isso é combustível para seguirmos acelerando mais e mais", nos conta.
 
Para ele, que começou no Curso Livre do Sesc e teve o privilégio de trabalhar e aprender com grandes Mestres como Zé Celso, Harildo Déda, Fernando Guerreiro e Luiz Marfuz, o caminho é sem volta. "Cada dia mais, rostos e corpos pretos serão sinônimo de beleza e vão inundar as telas desse país", sentencia.
 
E por mais que o racismo estrutural continue sendo um empecilho para que o espaço conquistado seja equânime, continuará também sendo firme a postura de quem deseja um mundo de mais inclusão. “Enquanto houver racismo estrutural, a luta continuará!”, reforça Margareth.
 
Fotos: Thiago Rosarii (Uran Rodrigues), Wesley Diego (Wesley Lemos), José de Holanda (Margareth) e Divulgação/Reprodução. Também estamos no Instagram (@sitealoalobahia), Twitter (@Aloalo_Bahia) e Google Notícias.

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