01 Nov 2021
Baía de Todos os Santos no teatro do mundo: 520 anos de batismo e outras histórias
América, Atlântico e a Capitania da Bahia. Pormenor do mapa de Johannes Keulen. 1680.Imagem: See Baynton-Williams New Worlds, p.76.
O teatro do mundo
Um oceano de temores e horizontes desconhecidos separava o “Velho Mundo” do “Novo”, que na verdade só era novo aos olhos de quem não o conhecia, os europeus. No final do século XV, e no famoso 1500 com a esquadra cabralina, espanhóis e portugueses iniciaram o processo de conquista de terras americanas. Um ano depois outros viajantes com a missão de reconhecimento das terras ocidentais no Atlântico Sul, margearam a costa do nordeste brasileiro até avistarem uma baía, prontamente nomeada de Todos os Santos pelo navegador e geógrafo Américo Vespúcio, era o dia 1º de novembro daquele ano.
Nos mapas presentes em Atlas, entre a segunda metade do século XVI ao XIX, nota-se que para além do intrincado conjunto de retas e rotas marítimas (com nomes, floreios e desenhos ilustrando as sagas em alto mar) também estava presente o indicativo localizando a Capitania da Bahia. Tal destaque não é atoa, o lugar era e é um ponto estratégico nas rotas comerciais, ainda mais em épocas em que a Terra Brasilis estava dando passos na inserção das relações marítimas atlânticas.
Em 1519 no conhecido mapa “Terra Brasilis”, desenhado pelo cartógrafo português Lopo Homem, com ajuda de Pedro e Jorge Reinel, a América Portuguesa aparece encrustada de grandes árvores, indígenas vestindo cocares e penas, naus e brasões portugueses; uma verdadeira apologia ao império. Detalhe importante a ser sinalizado na obra são as representações de árvores derrubadas, indicando o que marcaria as décadas iniciais daquele século, com o comércio extensivo de madeiras e do pau-brasil (que deu nome ao que se tornou o país). Toda a costa Atlântica no mapa aparece riscada com uma infinidade de nomes mostrando rios, baías, serras, pescarias e portos. Lá, na costa Nordeste, aparece: “[...]de todolos stos” com sua reentrância: a Baía. Nessa época ainda não tinham pensado na criação da capital da América portuguesa, a Cidade do Salvador, que só surgiu em 1549.

Terra Brasilis. Lopo Homem, auxiliado por Pedro e Jorge Reinel, Atlas Miller. 1519.
Imagem: Biblioteca Nacional.
Na sanha colonizadora homens brancos saíram nomeando o que estava próximo e ao alcance dos olhos seguindo a ótica do “velho mundo” cristão. Terras que nunca tinham “visto ou ouvido” referências a santos católicos passaram a ser conhecidas por esses termos. O ato de dar um nome a algo também é um indicativo de posse, se nomeia o que se quer conquistar, aquilo que se é de alguém. A grande reentrância de água salgada, como já dito, é nomeada de Todos os Santos, conforme indicava o calendário cristão no mês de novembro. Anos e séculos depois essa Baía de águas calmas seria também um dos palcos do grande teatro onde os mares eram pontes para todas as relações socioculturais e comerciais até o século XIX.
Uma velha Baía Kirimurê
Como dito anteriormente nomeia-se algo que é seu ou que busca ser, foi o que aconteceu com a Baía, foi o que aconteceu com o Brasil. Nomes estão ligados a posse, ao ato de instituir algo, de criar ou inventar. Antes de 1501, ano do batismo sob a ótica cristã da Baía, conhecida pelos indígenas por Kirimurê (Paraguaçu, para alguns autores), toda a região era referência para diversos povos que viviam ou já passaram por lá, conforme lembra a historiadora Maria Hilda Paraiso em “Baia de Todos os Santos. Aspectos Humanos”, de 2011:
“Quando da chegada dos portugueses a Kirimurê, a qual batizaram com o nome de Baía de Todos os Santos, os conflitos já eram antigos. Os tupinambás haviam se apossado da região, após terem expulsado os tupinaês para o interior das matas do rio Paraguaçu. Porém, antes destes, ali teriam vivido grupos Gê, provavelmente Kiriri. [...]”
Longe de uma ideia romântica, de uma forma ou de outra ainda presente no imaginário popular, o processo colonizador foi marcado também pelo enfrentamento dos povos indígenas que foram escravizados. E para além das tensões e dos encontros entre o homem branco e os indígenas no século XVI, existiu todo um complexo panorama de relações e disputas entre as comunidades que ladeavam Kirimurê há muito tempo antes dos portugueses.
É certo afirmar que todo esse espaço banhado pelo mar presenciou tensões, conflitos ocupações tupinambás e a criação das cidades, seguindo o traçado luso, no recôncavo baiano; em diálogo com o rio e o mar. Espaço que não foi descoberto por portugueses, ou nenhum outro homem branco, afinal não se descobre o que já era ocupado há milhares de anos com ricas culturas que ali se desenvolveram.

No imaginário europeu, presente em diversas descrições e relatos de viajantes, o extenso litoral do Atlântico Sul era povoado por canibais em vastas terras a serem exploradas. Um dos relatos mais conhecidos está no livro: “Duas Viagens ao Brasil” de Hans Staden, publicado em 1557, onde o próprio autor conviveu como prisioneiro entre os tupinambás na região do Rio e São Paulo. Nessa obra e em outros trabalhos uma série de interpretações carregadas de visões externas, ou com viés crítico a Portugal, foram difundidas pela Europa. Uma América portuguesa que durante décadas foi narrada e divulgada por estrangeiros. Na Capitania da Bahia, com a capital Salvador, a visão exploratória, aliada a catequização dos indígenas, buscou moldar os contornos em volta da grande Baía com suas faces de enfrentamento e resistências.
Riquezas perdias
A relevância portuária da Baía no decorrer do século XVIII, ainda quando Salvador era capital da América portuguesa até 1763, e no XIX com a abertura dos portos em 1808, é apenas parte do grande cenário de disputas e de circulação de riqueza em águas baianas e atlânticas. Um século antes, nos anos de 1600, nas águas de uma “Baya de Todos os Sanctos”, conforme grafia presente na conhecida gravura holandesa da época, a região entrou em conflito com a dominação holandesa que aqui ficou um ano. Em jogo estava a importante Cidade do Salvador, sua posição privilegiada e a grande baía, estratégica para os interesses comerciais na época.

Ataque de Salvador no século XVII. Andries van Eertvelt, aproximadamente 1624.
Durante muito tempo o açúcar reinou como o principal produto da economia colonial voltado para a exportação, quem quiser mais detalhes ver: “Segredos Internos. Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial”, de Stuart B. Schwartz. Relatos antigos mostram a magnitude do comércio e das idas e vindas de embarcações levando a doce riqueza para Europa, e demais regiões, fruto do trabalho de escravizados. Tudo era transportado pelos mares em viagens que duravam dias e meses em condições precárias, mas habituais no cenário do século XVII. Ao lado do açúcar, demais objetos e produtos também eram transportados nos grandes barcos, inclusive peças em metais preciosos e moedas de ouro. O que acabava chegando aos portos era rapidamente redistribuído em uma rede de comércios e companhias onde cada grupo ficava com uma parte. Com sede no Hemisfério Norte uma dessas companhias marcou toda uma época a: Companhia das Índias Ocidentais – mas aí será assunto para outro texto (mais no instagram @rafadantashistorart).
O que não chegava aos grandes portos, ficava nos portos menores, se perdia em naufrágios, ou passava para outras mãos com a pirataria. E sendo a Baía de Todos os Santos esse grande lugar de encontros no teatro do mundo, várias embarcações nessas águas se perderam junto com suas riquezas.

Bahia de Todos os Sanctos. Joan Blaeu, 1596-1673. LCEUA.
Longe das histórias sensacionalistas (tão presentes em vídeos e textos rasos nas redes sociais) e sim com bases em fontes e textos historiográficos, não é exagero afirmar que verdadeiros tesouros afundaram em águas baianas (como o Galeão Sacramento, in: Sebastião da Rocha Pita “História da América Portuguesa 1500 - 1724”. Tanto tesouros em ouro e outros metais, como tesouros arqueológicos, que séculos depois foram encontrados e vendidos para colecionadores e em grandes leilões no exterior. Relatos sobre esses causos podem ser encontrados entre velhos comerciantes de antiguidades e outras pessoas que presenciaram o que já foi encontrado nas redondezas dos mares da Barra e em Itaparica. Desde centenas de moedas de ouro dos séculos XVII e XVIII a inúmeras peças cheias de histórias, hoje dispersas em coleções privadas mundo a fora ou destruídas. Uma pequena, mas importante parte dessas peças pode ser vista no Museu Náutico no Farol da Barra. O Brasil nunca cuidou da forma que deveria das riquezas arqueológicas dos mares e do litoral.
Chegadas e partidas
Todo porto é um lugar de chegadas e partidas, de encontros e desencontros, sonhos e desalentos. Para além de toda a evidência que a Baía de Todos os Santos alcançou ao longo dos seus 520 anos de batismo, deve-se lembrar que foram por essas águas que chegaram mundos diversos, culturas, etnias.
Foi adentando o eixo Sul, passando pela ponta do Padrão na Barra, em direção a já consolidada Cidade do Salvador com seu porto, que dezenas, centenas e posteriormente milhares de escravizados foram sequestrados de suas terras e levados para a América, em uma viagem que poderia durar meses em profunda exaustão. Em terra, já cruzada a baía, os trâmites para o desembarque, acomodação e venda dos cativos seguiam direcionamentos específicos a depender dos interesses exististes nos leilões e mercados de cada época, tráfico que se intensificou principalmente com a descoberta do ouro nas Minas Gerais nos setecentos. Cenário perdurado por séculos, até o fim do tráfico de escravizados em meados do XIX, e que teve na grande Baía o cenário de fundo do comércio marítimo da província.
Imaginem as cenas daqueles e daquelas que no mar, saindo dos navios, observavam a nova geografia com casarios em duas cidades, a Alta e a Baixa, com torres de igrejas e mercados, ou cenários de pequenos portos cercados pelo verde com caminhos indicando uma longa viagem terra a dentro. Paisagens desconhecidas para os escravizados, recém-chegados, que sinalizavam um mundo de incertezas e privações de liberdade. Oceanos que eram caminhos para pesadelos que tinham como parada final portos seguros, alguns em belas baías, onde uma vida de resistências, dores e anseios era iniciada.

Os clássicos da historiografia: “O Navio Negreiro”, do historiador e professor de história marítima na Universidade de Pittsburg, Marcus Rediker, destrincha o passo a passo de sofrimentos em navios que cruzavam a brisa do mar e enriqueceram homens em um comércio extremamente lucrativo, lembra Luiz Viana Filho. “Capitalismo & Escravidão” que viu nas rotas marítimas o nascimento de potências econômicas nos dois hemisférios, como lembra o historiador Eric Williams no clássico livro citado. Rotas essas que foram passagem, já no século XIX, de personagens como Rufino José Maria, estudado pelo historiador baiano João José Reis, Flávio dos Santos e Marcus de Carvalho em “O Alufá Rufino. tráfico, escravidão e liberdade no atlântico negro (c. 1822 – 1853)”. A Baía foi a grande porta de entrada de quase tudo o que aconteceu no estado.
Entre mares
Ao longo dos seus 520 anos de batismo, sob ótica cristã e abençoada por todos os Santos, o palco Baía presenciou o encontros entre indígenas, europeus, africanos e asiáticos. Junto com o mundo se modificou com as idas e vindas, recebendo ideais que aportaram revoltas, como a dos Búzios e do Malês. Kirimurê foi a grande personagem da tessitura chamada Bahia.
Em outro cenário, bem diferente ao do Atlântico Sul, o historiador francês Fernand Braudel, em sua clássica obra sobre o mar Mediterrâneo na época de Felipe II da Espanha, mostrou o rico panorama de interfaces e conexões presentes nas cidades ligadas pelo grande mar. Não seria exagero apontar que a Baía de Todos os Santos está para o contexto baiano como o Mar Mediterrâneo esteve, em suas devidas proporções, para as comunidades do sul europeu e norte da África/Oriente, e a importância dessas conexões na esfera comercial.
Pierre Verger em outro clássico “Fluxo e refluxo: Do tráfico de escravos entre o golfo do Benim e a Bahia de Todos-os-Santos, do século XVII ao XIX”, dedicado a Braudel e outros, apresenta dados pormenorizados do tráfico atlântico e as transcrições das fontes estudadas entre os dois extremos, divididos pelo Atlântico, mas tão próximos. Uma Baía tão grande, a segunda maior do globo, “[...] com vasto ancoradouro capaz de reunir abrigadamente todas as esquadras do mundo[...]”, lembrou no século XIX Durval Vieira de Aguiar em seu livro “Descrições práticas da Província da Bahia”.
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