Como funciona a delação premiada? Gamil Foppel explica

Pede-me o site alô Alô Bahia um breve relato a respeito da delação premiada e os seus efeitos para o direito penal e processual penal pátrios. Esclareça-se, portanto, imediatamente, que não se cuidam, estas linhas, de um artigo acadêmico ou feito com qualquer tipo de fôlego ou alento científico. O presente serve, apenas, para fixar noções mínimas a respeito do instituto, tendo em vista a curiosidade natural que recai sobre institutos de direito penal. Diga-se de passagem, as considerações aqui feitas são postas genericamente, sem que se fale de qualquer caso concreto em específico.

Diversas leis vêm, ao longo dos últimos 25 anos, tratando da delação premiada no Brasil. Com efeito, a lei dos crimes hediondos (lei 8072/1990); o próprio Código Penal (CP, artigo 159, parágrafo quarto); lei de lavagem de dinheiro (desde a lei 9613/1998 e com as alterações promovidas pela lei 12683/2012); lei de crimes contra a ordem econômica – especificamente para os crimes econômicos, chama-se de acordo de leniência - (previsto na lei 12529/2011); lei de proteção a vítimas e a réus colaboradores (lei 9807/1999); lei antidrogas (lei 11343/2006) e, finalmente, na lei de crime organizado (lei 12850/2013, que revogou a lei 9034/1995).

Antes de analisar sob o prisma dogmático, sobreleve-se que a delação premiada é o reconhecimento da absoluta e manifesta falência do sistema investigativo estatal. Com efeito, em uma época em que os recursos tecnológicos avançaram tanto, permitindo a lei acesso a dados bancários, telefônicos, fiscais; permitindo a realização de grampos e monitoramento ambiental (captação de qualquer tipo de sinal de imagem e de som em qualquer tipo de ambiente); autorizando a lei até mesmo a infiltração de agentes policiais, bem como medidas ainda mais incisivas, como a busca e apreensão e a prisão temporária (excrescência inconstitucional vigente no ordenamento interno)[1]; determinando a lei que empresas e pessoas físicas estejam compelidas a notificar movimentações suspeitas (instituto chamado de compliance); facultando a lei à autoridade policial o retardamento da prisão em flagrante (o que se chama, tecnicamente, de ação controlada), é inexplicável, que, diante de uma miríade de meios investigatórios, as agências de controle ainda precisem da cooperação premiada de um sujeito com comportamento desviante. É dizer, utilizar-se de um criminoso para combater o próprio crime é, a um só tempo, valer-se de um meio de questionável padrão ético, confessando, ao mesmo tempo, que o estado não teve capacidade para identificar e comprovar a autoria e a materialidade de fatos puníveis. Além de tudo isso, é medida de duvidosa moralidade (moralidade que é um dos princípios basilares do ordenamento constitucional), tendo em vista que o estado se vale da palavra de um investigado para condenar os demais e, em uma troca de concessões, propor-lhe penas mais brandas ou, até mesmo, a extinção da punibilidade pelo perdão judicial. Aliás, a própria efetividade da medida também é bastante questionável do ponto de vista prático, haja vista que se constata, em alguns países europeus, que o índice de reincidência dos réus arrependidos é bem próximo dos índices gerais de reincidência.

A lei, além de autorizar a celebração de delação, criou uma série de direitos para o réu delator, a saber: ter identidade e imagem preservadas, sem possibilidade de divulgação, salvo mediante a sua concordância por escrito (deve-se ressaltar que a divulgação da imagem sem autorização passou a configurar crime); em verdade, os direitos do delator, quando a matéria envolver crime organizado, são previstos no artigo 5.o. da lei 12850/2013. São eles: Art. 5o  São direitos do colaborador:I - usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica;[2]II - ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados;III - ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes;IV - participar das audiências sem contato visual com os outros acusados;V - não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito;VI - cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados.

A Lei 12850/2013, prevê, no artigo 4.o., que o juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:

I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

Deve-se ter em conta que a lei não exige que todas as circunstâncias sejam atendidas, bastando uma delas. Como se trata de norma que estabelece requisitos que, se atendidos, atenuam a pena do investigado, trata-se, no dizer de Celso Delmanto, de mais um direito subjetivo do réu: ou seja, preenchidos os requisitos, a concessão se impõe.

Outro problema é que a lei não estabelece, de antemão, quando será aplicado o perdão, quando será reduzida a pena e quando haverá substituição por penas alternativas. São consequências prática e juridicamente completamente diferentes, e essa insegurança jurídica deveria ter sido evitada. A ausência de parâmetros claros de opção por uma ou outra alternativa vai potencializar ainda mais os defeitos deste meio de prova. A lei estabelece, de forma lacônica, que “Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração. Permite a lei que o Ministério Público deixe de denunciar o investigado quando “§ 4oNas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador:I - não for o líder da organização criminosa;II - for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo.”.

Com as devidas e necessárias licencas, tomando-se por base a existência da delação premiada prevista em lei, o único critério aceitável para dosar as consequências parece ser o da efetividade da delação, é dizer, o que se produziu com a delação. Falar-se em consideração a respeito da personalidade do investigado é subverter a regra do direito penal, que é o fato e não do autor; falar-se, ainda, que se levará em consideração a natureza ou gravidade da infração é confundir, inexplicavelmente, um meio de prova com a gravidade em abstrato do delito; estabelecer-se, ao fim, que a “repercussão social do fato” pautará as consequências da delação é reger o processo penal pelos rumores que ele traz, o que é francamente inaceitável.

Mas, em 2013, o legislador foi além, a permitir que a delação premiada seja feita até mesmo depois de proferida a sentença, ao dispor que “Se a colaboração for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos”. Ou seja, um réu, condenado, pode, simplesmente, progredir de regime, se depois da sentença, aceitar fazer a delação. Lamentável. Convém registrar que a lei permite a progressão mesmo que desatendidos os requisitos objetivos, é dizer, mesmo que o sentenciado não tenha comportamento satisfatório e à mingua do cumprimento do lapso temporal que autorizaria a progressão.

Curiosa é a regra prevista da lei de que a delação é retratável, a saber: § 10. As partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor.
E, ao fim, prevê, em outra evidente inconstitucionalidade, a lei que o réu colaborador renunciará ao direito ao silêncio.

Os benefícios outorgados ao delator são o preço que o legislador aceitou pagar pela busca da verdade. Assim, haverá pessoas simplesmente perdoadas, ou com penas sensivelmente reduzidas, ou, ainda, com penas alternativas, ou com progressão de regime – ainda que desatendidos os requisitos objetivos – como moeda de troca pela prova de crimes que caberiam ao estado investigar.

É evidentemente imoral aceitar-se que o processo penal se transforme em um balcão de negócios, onde, em nome de uma suposta verdade, se lança mão de uma conta corrente com créditos e débitos de liberdades fundamentais para os investigados. Penso que, por exceção, o único crime que deveria aceitar a delação premiada seria o violento contra a pessoa (no exemplo clássico da extorsão mediante sequestro), desde que a vítima fosse localizada com a integridade preservada. Somente neste caso, pela relevância do bem jurídico e pela necessidade de proteger a vítima, seria legitimado aceitar este meio probatório. Do contrário, com a vulgarização do imoral (e, decorrentemente, inconstitucional) instituto da delação, em algum tempo, haverá, em alguns casos, uma verdadeira balbúrdia de delações, conflitantes, todas à espera de uma redução de pena.
 
Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
 
[1] A prisão temporária é, ao fim e ao cabo, uma prisão para investigação, que não se sustenta, seja pela absurda inconstitucionalidade formal, porque resultou da conversão de medida proviória em lei, seja principalmente, porque ao investigado é assegurado o direito ao silêncio. A prisão temporária não se confunde com a preventiva, que, tendo natureza cautelar, tem finalidades e fundamentos diversos.
[2] Vide Lei 9807/1999.

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