24 Oct 2014
Como funciona a delação premiada? Gamil Foppel explica
Diversas leis vêm, ao longo dos últimos 25 anos, tratando da delação premiada no Brasil. Com efeito, a lei dos crimes hediondos (lei 8072/1990); o próprio Código Penal (CP, artigo 159, parágrafo quarto); lei de lavagem de dinheiro (desde a lei 9613/1998 e com as alterações promovidas pela lei 12683/2012); lei de crimes contra a ordem econômica – especificamente para os crimes econômicos, chama-se de acordo de leniência - (previsto na lei 12529/2011); lei de proteção a vítimas e a réus colaboradores (lei 9807/1999); lei antidrogas (lei 11343/2006) e, finalmente, na lei de crime organizado (lei 12850/2013, que revogou a lei 9034/1995).
Antes de analisar sob o prisma dogmático, sobreleve-se que a delação premiada é o reconhecimento da absoluta e manifesta falência do sistema investigativo estatal. Com efeito, em uma época em que os recursos tecnológicos avançaram tanto, permitindo a lei acesso a dados bancários, telefônicos, fiscais; permitindo a realização de grampos e monitoramento ambiental (captação de qualquer tipo de sinal de imagem e de som em qualquer tipo de ambiente); autorizando a lei até mesmo a infiltração de agentes policiais, bem como medidas ainda mais incisivas, como a busca e apreensão e a prisão temporária (excrescência inconstitucional vigente no ordenamento interno)[1]; determinando a lei que empresas e pessoas físicas estejam compelidas a notificar movimentações suspeitas (instituto chamado de compliance); facultando a lei à autoridade policial o retardamento da prisão em flagrante (o que se chama, tecnicamente, de ação controlada), é inexplicável, que, diante de uma miríade de meios investigatórios, as agências de controle ainda precisem da cooperação premiada de um sujeito com comportamento desviante. É dizer, utilizar-se de um criminoso para combater o próprio crime é, a um só tempo, valer-se de um meio de questionável padrão ético, confessando, ao mesmo tempo, que o estado não teve capacidade para identificar e comprovar a autoria e a materialidade de fatos puníveis. Além de tudo isso, é medida de duvidosa moralidade (moralidade que é um dos princípios basilares do ordenamento constitucional), tendo em vista que o estado se vale da palavra de um investigado para condenar os demais e, em uma troca de concessões, propor-lhe penas mais brandas ou, até mesmo, a extinção da punibilidade pelo perdão judicial. Aliás, a própria efetividade da medida também é bastante questionável do ponto de vista prático, haja vista que se constata, em alguns países europeus, que o índice de reincidência dos réus arrependidos é bem próximo dos índices gerais de reincidência.
A lei, além de autorizar a celebração de delação, criou uma série de direitos para o réu delator, a saber: ter identidade e imagem preservadas, sem possibilidade de divulgação, salvo mediante a sua concordância por escrito (deve-se ressaltar que a divulgação da imagem sem autorização passou a configurar crime); em verdade, os direitos do delator, quando a matéria envolver crime organizado, são previstos no artigo 5.o. da lei 12850/2013. São eles: Art. 5o São direitos do colaborador:I - usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica;[2]II - ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados;III - ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes;IV - participar das audiências sem contato visual com os outros acusados;V - não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito;VI - cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados.
A Lei 12850/2013, prevê, no artigo 4.o., que o juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.
Deve-se ter em conta que a lei não exige que todas as circunstâncias sejam atendidas, bastando uma delas. Como se trata de norma que estabelece requisitos que, se atendidos, atenuam a pena do investigado, trata-se, no dizer de Celso Delmanto, de mais um direito subjetivo do réu: ou seja, preenchidos os requisitos, a concessão se impõe.
Outro problema é que a lei não estabelece, de antemão, quando será aplicado o perdão, quando será reduzida a pena e quando haverá substituição por penas alternativas. São consequências prática e juridicamente completamente diferentes, e essa insegurança jurídica deveria ter sido evitada. A ausência de parâmetros claros de opção por uma ou outra alternativa vai potencializar ainda mais os defeitos deste meio de prova. A lei estabelece, de forma lacônica, que “Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração. Permite a lei que o Ministério Público deixe de denunciar o investigado quando “§ 4oNas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador:I - não for o líder da organização criminosa;II - for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo.”.
Com as devidas e necessárias licencas, tomando-se por base a existência da delação premiada prevista em lei, o único critério aceitável para dosar as consequências parece ser o da efetividade da delação, é dizer, o que se produziu com a delação. Falar-se em consideração a respeito da personalidade do investigado é subverter a regra do direito penal, que é o fato e não do autor; falar-se, ainda, que se levará em consideração a natureza ou gravidade da infração é confundir, inexplicavelmente, um meio de prova com a gravidade em abstrato do delito; estabelecer-se, ao fim, que a “repercussão social do fato” pautará as consequências da delação é reger o processo penal pelos rumores que ele traz, o que é francamente inaceitável.
Mas, em 2013, o legislador foi além, a permitir que a delação premiada seja feita até mesmo depois de proferida a sentença, ao dispor que “Se a colaboração for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos”. Ou seja, um réu, condenado, pode, simplesmente, progredir de regime, se depois da sentença, aceitar fazer a delação. Lamentável. Convém registrar que a lei permite a progressão mesmo que desatendidos os requisitos objetivos, é dizer, mesmo que o sentenciado não tenha comportamento satisfatório e à mingua do cumprimento do lapso temporal que autorizaria a progressão.
Curiosa é a regra prevista da lei de que a delação é retratável, a saber: § 10. As partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor.
E, ao fim, prevê, em outra evidente inconstitucionalidade, a lei que o réu colaborador renunciará ao direito ao silêncio.
Os benefícios outorgados ao delator são o preço que o legislador aceitou pagar pela busca da verdade. Assim, haverá pessoas simplesmente perdoadas, ou com penas sensivelmente reduzidas, ou, ainda, com penas alternativas, ou com progressão de regime – ainda que desatendidos os requisitos objetivos – como moeda de troca pela prova de crimes que caberiam ao estado investigar.
É evidentemente imoral aceitar-se que o processo penal se transforme em um balcão de negócios, onde, em nome de uma suposta verdade, se lança mão de uma conta corrente com créditos e débitos de liberdades fundamentais para os investigados. Penso que, por exceção, o único crime que deveria aceitar a delação premiada seria o violento contra a pessoa (no exemplo clássico da extorsão mediante sequestro), desde que a vítima fosse localizada com a integridade preservada. Somente neste caso, pela relevância do bem jurídico e pela necessidade de proteger a vítima, seria legitimado aceitar este meio probatório. Do contrário, com a vulgarização do imoral (e, decorrentemente, inconstitucional) instituto da delação, em algum tempo, haverá, em alguns casos, uma verdadeira balbúrdia de delações, conflitantes, todas à espera de uma redução de pena.
Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
[1] A prisão temporária é, ao fim e ao cabo, uma prisão para investigação, que não se sustenta, seja pela absurda inconstitucionalidade formal, porque resultou da conversão de medida proviória em lei, seja principalmente, porque ao investigado é assegurado o direito ao silêncio. A prisão temporária não se confunde com a preventiva, que, tendo natureza cautelar, tem finalidades e fundamentos diversos.
[2] Vide Lei 9807/1999.