Como funcionará a Fundação Gal Costa? Veja o que previa testamento

Como funcionará a Fundação Gal Costa? Veja o que previa testamento

Redação Alô Alô Bahia

redacao@aloalobahia.com

Carolina Cerqueira e Fernanda Santana, do Jornal Correio*

Divulgação

Publicado em 13/04/2024 às 08:23 / Leia em 12 minutos

Gal Costa colhia os louros do sucesso no fim dos anos 90. Havia gravado os principais álbuns, viajou o mundo em turnês míticas, já era um dos símbolos da música nacional. Nessa época, sem fazer alarde, imaginou o futuro do legado dela, e escreveu sobre isso em páginas que seriam reencontradas três décadas mais tarde.

Naquelas folhas de 1997, Gal registrou um testamento em que destinava seu patrimônio à “Fundação Gal Costa de Incentivo à Música e Cultura”, que deveria ser criada na Bahia. O filho da cantora, Gabriel Penna Burgos Costa, soube desse projeto apenas em janeiro deste ano e se comprometeu a transformar o antigo sonho da mãe em realidade.

“Decidi tomar conta das coisas dela para deixá-la orgulhosa e fazer com que a imagem dela siga sendo espalhada pelo Brasil e pelo mundo. Para fazer a arte dela alcançar mais gente”, disse o estudante.

Registro de Gal ao lado do filho, Gabriel (Foto: Reprodução/Instagram)

O futuro da sua obra era uma preocupação de Gal, e estava latente quando escreveu o testamento. Um problema de saúde do irmão Guto Burgos, à época empresário dela, a fez pensar sobre sua própria morte. Em um encontro com a amiga e advogada Luci Vieira Nunes, no apartamento dela no Leblon, no Rio de Janeiro, revelou o desejo de criar uma fundação.

“Andei pensando bem, quando eu morrer, quero ajudar os músicos e pessoas da arte que tenham necessidades financeiras e não consigam estudar música”, foi o que Gal disse naquela noite, segundo a memória de Luci.

Durante dois meses, Gal organizou os detalhes do projeto, cujos documentos de registro ficaram em envelopes lacrados e engavetados. Só depois da morte de Gal, em novembro de 2022, aos 77 anos, que essa história começaria a vir à tona. Em janeiro deste ano, segundo Luci, ela compartilhou os velhos planos de Gal para Gabriel.

Trecho do testamento determinada destinação do patrimônio à criação da Fundação (números dos documentos das pessoas citadas foram borrados) (Foto: Captura de tela)

Enquanto isso, em Salvador, duas primas da cantora, Verônica Silva e Priscila de Magalhães, já estavam cientes do projeto da ONG, depois de encontrarem uma cópia do testamento em casa. Estavam dispostas a fazê-lo valer.

No dia 30 de março, em reportagem exclusiva do jornalista Ronaldo Jacobina, o CORREIO, parceiro do Alô Alô Bahia, noticiou que elas tinham ingressado com um processo judicial para fazer valer o testamento de 1997. A ação foi arquivada depois que Verônica e Priscila firmaram um acordo extrajudicial com Gabriel, no dia 1º de abril, no qual ele assumiu o dever de criar a fundação. O documento foi acessado com exclusividade pela reportagem.

O acordo prevê que a criação será feita nos moldes do que disse Gal no testamento. Os principais objetivos do instituto, que não terá fins lucrativos, são a formação de músicos e outros artistas, a promoção de festivais e concursos, a realização de cursos de música gratuitos para a população carente e a doação de instrumentos musicais.

Acordo é assinado, a próprio punho, por Gabriel

Acordo é assinado, a próprio punho, por Gabriel (Foto: Captura de Tela)

O instituto em homenagem à trajetória de Gal ajuda a preservar e projetar ainda mais, para as próximas gerações, a memória da cantora que alcançou o estrelato primeiro com a Tropicália e depois se tornaria uma das mais marcantes da história do Brasil.

João Gilberto, Antonio Carlos Jobim e Caetano Veloso costumavam dizer que o som da voz de Gal era o próprio significado de música.

“E isso fazia com que o espírito dela expressasse sentimentos, asperezas, doçuras, de modo espontâneo”, escreveu Caetano, um ano depois da morte Gal, para quem compôs clássicos como “Baby” e “Meu Bem, Meu Mal”. “O que ela nos deu de beleza não nos deixará”, previu.

O que disse Gal em testamento sobre a fundação

Quando escreveu o testamento, Gabriel ainda não tinha sido adotado, o que aconteceria apenas em 2007. Gal elegeu cinco primas maternas como responsáveis por fazer acontecer a futura fundação. Uma delas faleceu, outra não poderia pelas limitações da idade e a terceira não foi localizada pela reportagem. Sobraram Verônica e Priscila, mãe e filha, respectivamente.

Com o acordo firmado com ele, no entanto, as duas delegam a Gabriel a gestão ou a escolha dos gestores da fundação. A pessoa administradora da fundação, previu Gal, terá direito a uma remuneração de “2% do valor do acervo dos bens inventariados”.

O testamento indica como a fundação deverá funcionar, com o propósito de “propiciar a musicistas carentes e já idosos uma melhor situação financeira”.

Trecho de testamento descreve objetivo da Fundação

Trecho de testamento descreve objetivo da Fundação (Foto: Captura de tela)

A fundação prevê a cobrança de mensalidades dos alunos que puderem pagar e “admite mantenedores e contribuições de terceiros”. Não há, ainda, estimativas para os custos envolvidos na Fundação Gal. “Irei atrás de patrocinadores. Acho que muitas pessoas irão ajudar”, acredita Gabriel.

“Não há nenhum interesse nisso. A todo momento, nosso intuito era ajudar, garantir a fundação Gal Costa, porque ela merece isso […] Gal é ‘a mãe de todas as vozes”, comemora Priscila, em referência a um trecho da música composta por Nando Reis em homenagem à cantora. Ela regravou a canção no disco “A Pele do Futuro”, de 2018.

O secretário Municipal de Cultura e Turismo de Salvador, Pedro Tourinho, afirmou que não houve conversas formais nesse sentido, mas está aberto ao diálogo. “Enquanto hipótese sim, recebemos consultas desse tipo de diversas fundações e famílias de artistas”, disse.

Gal não invalidou a participação de pessoas de outros estados ou países, mas exigiu que a sede da Fundação fosse na Bahia.

A cantora, afinal, nasceu em Salvador, em setembro de 1945, e cresceu entre os bairros da Barra e Graça. Por aqui, tinha uma vida cultural intensa na juventude, frequentando teatro, cinema e concertos de música. Foi na Bahia, também, que deu os primeiros passos na carreira, influenciada por João Gilberto e ao lado dos também estreantes Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gilberto Gil e Tom Zé.

João Gilberto, Caetano Veloso e Gal em programa da extinta TV Tupi, em 1971 (Reprodução)

Entre os anos 2000 e 2012, Gal voltou a viver em Salvador, já com o filho. Mas o acordo extrajudicial firmado por Gabriel, que mora em São Paulo, deixou em aberto o endereço da Fundação Gal Costa.

Em conversas entre os advogados de Gabriel e de Priscila e Verônica, houve troca de informações sobre casas em Salvador para sediar o projeto. Ainda não houve conclusões.

O que significa uma fundação para Gal Costa

Isso porque até há alguns projetos desse tipo espalhados pelo Brasil, mas nenhum com este porte e proposta de formação de músicos.

Carmen Miranda, por exemplo, nomeia um museu no Rio de Janeiro, desde 1976. O espaço, no Aterro do Flamengo, é aberto ao público e abriga só trajes sociais e cenográficos da cantora – são 3 mil, ao todo. Itens de Elis Regina também estão expostos ao público, em dos espaços da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre.

As duas cantoras, assim como outros grandes artistas antecessores de Gal, produziram em uma época analógica, o que dificulta a criação de um acervo digital robusto delas. Já Gal aparece em incontáveis registros em vídeo e áudio.

“Gal tem uma força artística e uma dimensão fabulosa. É um fenômeno que inclusive as novas gerações estão interessadas em conhecer melhor”, justifica Paulinho.

A conexão de Gal com as novas gerações, expressa em seu testamento, se evidencia ao longo da carreira, recheada de parcerias com cantores ascendentes.

Um mês antes de morrer, Gal gravou um dueto com Marina Senna de “Para Lennon e McCartney, do Clube da Esquina. No seu último álbum, intitulado “Nenhuma Dor” (2021), reuniu nomes como Silva e Tim Bernardes. Antes disso, em 2018, convidou Marília Mendonça, que morreu três anos depois, para gravar a inédita “Cuidando de longe”.

Marina Senna e Gal Costa (Foto: Alile Dara Onawale / Divulgação)

A cantora também gostava de estar rodeada de novas gerações de músicos. No CD Hoje, de 2005, ela interpreta canções de compositores na época pouco conhecidos como Moisés Santana e Junio Barreto.

Paulinho acredita que a criação da Fundação dialoga com esse incentivo a novos músicos, e reafirma a força de Gal. “Acho que num período ela teve noção de quão grande era, depois perdeu isso. Quando ela esteve no auge, nos anos 1980 e 1990, ela tinha essa noção”, diz.

Na primeira entrevista depois da morte da mãe, ao programa Fantástico, da TV Globo, Gabriel também admitiu que não tinha visão da “dimensão dela como cantora”, o que mudou depois do enterro. “Eu só tinha a visão de que ela é minha mãe”, disse.

A música foi um destino construído para Gal, primeiro, pela mãe dela, Mariah Penna Costa. Grávida, Mariah ouvia canções todos os dias para que o filho — ainda não sabia que seria uma menina — fosse um grande músico.

Capa do disco Gal Tropical, de 1979

Capa do disco Gal Tropical, de 1979 (Foto: Paula Froes)

Um dos principais desafios para a criação dessa fundação já foi superado. “A vontade de fazer”, explica Gringo Cardia, arquiteto e artista visual por trás do mais bem sucedido projeto do tipo, a Casa de Jorge Amado, no Rio Vermelho, visitada por 30 mil pessoas por ano. O projeto é administrado pela família Amado, com apoio da Prefeitura de Salvador.

“O segundo desafio são os custos de se levantar essas memórias, por isso a importância da participação de alguma instituição, governo, ou cenas particulares”, exemplifica ele, hoje envolvido com dois projetos de casa-museu – um para o antropólogo Darcy Ribeiro e outro para a cantora Maysa Matarazzo.

Para criar o instituto, explica Gringo, é preciso também entender como torná-lo vivo. “Só a história, por mais importante, com roupas e um terço na parede, não significa nada”, afirma.

É preciso, na avaliação dele, conectar o passado com o presente, com a juventude mobilizada e instigada a fazer parte daquilo. Gal pensou nisso.

Figurinos podem compor acervo da fundação

Ao longo da carreira, Gal não deu muita importância para guardar artigos da carreira. Nos primeiros anos, inclusive, chegava a dormir com as roupas do show, as quais gastava até o último fiapo. Era uma das suas superstições. Mas ela reservou algumas, que devem fazer parte do acervo da fundação — embora, no testamento, ela não cite figurinos.

Desde 1999, Priscila e Verônica guardam 11 artigos enviados para elas pela cantora. Naquele ano, depois de vender a casa que tinha em Trancoso, na Bahia, Gal enviou para Maria Lúcia, mãe de Verônica, um caminhão com móveis, figurinos e documentos (não se sabe se o testamento chegou nesse veículo).

Vestido preto escolhido por Gal para subir ao palco do mítico Wiltern Theatre, no show com Tom Jobim, em Las Vegas, em 1987

Vestido preto escolhido por Gal para subir ao palco do mítico Wiltern Theatre, no show com Tom Jobim, em Las Vegas, em 1987 (Foto: Reprodução e Arquivo Pessoal)

As duas se comprometeram a enviar os itens para Gabriel, que vai decidir se eles farão parte da fundação. Entre os artigos, está o vestido preto escolhido por ela para subir ao palco do mítico Wiltern Theatre, no show com Tom Jobim, em Las Vegas, em 1987.

Os figurinos foram emprestados à atriz Sophie Charlotte, quando ela se preparava para interpretar Gal no filme “Meu Nome é Gal”, lançado em 2023. Das mãos de Sophie, os figurinos passaram para as de Priscila Trummer, produtora e amiga das primas de Gal, que vive no Rio.

“Tenho um cômodo da casa só para os artigos de trabalho e as roupas de Gal estão lá. É um ambiente preparado com umidificação, para não danificar as peças. Elas já foram catalogadas, higienizadas e um reparo de um vestido foi feito por uma especialista”, conta.

Vestido roxo usado por Gal no show

Vestido roxo usado por Gal no show “Lua de Mel Como o Diabo Gosta”, em Buenos Aires (Foto: Reprodução e Arquivo Pessoal)

Uma das diretoras do filme que conta parte da história de Gal, Lô Politi ressalta que as roupas ajudam a contar histórias.

“Ajudam a mostrar às pessoas quem foi Gal. Na verdade, não quem foi, mas quem é e sempre será. Ao contrário de outros artistas, as pessoas não conheciam detalhes da sua história e seus posicionamentos, por exemplo. Ela não se mostra pelo discurso, mas pela presença e comportamento”, diz.

“Gal já era gigante e, quando morreu, a gente pode ter mais noção ainda dessa grandeza. A expectativa quanto a história dela cresceu ainda mais”, concluiu.

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