Maratona à mesa: Salvador, aos poucos, adere ao ‘menu-degustação’

Maratona à mesa: Salvador, aos poucos, adere ao ‘menu-degustação’

Redação Alô Alô Bahia

redacao@aloalobahia.com

José Mion

Leo Freire/Origem

Publicado em 20/04/2024 às 08:14 / Leia em 13 minutos

A primeira edição do Nespresso Day Bahia, na última terça-feira (16), trouxe para o centro do debate os rumos da gastronomia e as tendências de mercado em Salvador. Na primeira vez que o encontro ocorreu fora do eixo Rio-São Paulo, através de uma parceria entre a marca de café e o Alô Alô Bahia, foram realizadas discussões importantes sobre o futuro e o momento atual da produção gastronômica na cidade, reunindo, como poucas vezes aconteceu, diversos donos de restaurantes e chefs, que, com suas rotinas atribuladas, nem sempre têm a oportunidade de confraternizar e compartilhar vivências.

Um dos temas que norteou boa parte do papo com o chef Vini Figueira, em um de seus restaurantes, no Rio Vermelho, foi como a gastronomia, cada vez mais, deixa de ser vista pela maioria da sociedade como um simples ato de comer. Fala-se mais em experiência e como o que atrai as pessoas a cada estabelecimento está atrelado ao que elas vivem ali, tendo a comida como figura central, mas não única, já que valoriza-se cada vez mais o serviço, o ambiente e outros detalhes, da hora em que se chega à hora em que se paga a conta.

Neste cenário, o que se percebe em Salvador é que mais e mais restaurantes têm abraçado o menu degustação como opção em seus serviços. Sua origem, segundo matéria do Valor Econômico, é a culinária japonesa Kaiseki, atribuída aos monges e que privilegia ingredientes sazonais e porções menores. Inspirados neste conceito, chefs como Paul Bocuse e Joël Robuchon, ambos falecidos em 2018, criaram sequências de pratos hoje associadas a restaurantes estrelados. Para se ter uma ideia, quatro dos restaurantes brasileiros premiados com duas estrelas na última edição do “Guia Michelin” serviam menu-degustação.

Fabrício e Lisiane, do Origem, em ação na cozinha | Foto: Reprodução/Redes Sociais

No caso da capital baiana, os primeiros chefs a aderirem ao formato – e únicos até hoje a terem pelo menos um espaço operando exclusivamente neste modelo – foram Fabrício Lemos e Lisiane Arouca, do Grupo Origem. O primeiro restaurante próprio deles na cidade, o premiado Origem, só recebe clientes com menu-degustação, assim como outros dois de seus negócios, o Segreto, que segue uma linha mais italiana, e o Fera Rooftop, no terraço do Fera Palace Hotel, que segue uma linha internacional, em constante “viagem” por diversos países, em técnicas e sabores.

“Menu degustação, para o mundo, é algo que está batido. Para nós, ainda é uma ferramenta muito importante para que as pessoas saiam da zona de conforto, quebrem alguns paradigmas. Sua grande virtude é o poder de transformar e dar novo uso a ingredientes do nosso dia a dia, com outra roupagem”, destaca Fabrício, que comanda o grupo com seis operações – em breve, sete, com a abertura de mais um formato de serviço – com a esposa e chef patissier, Lisiane.

Um dos “atos” do menu-degustação do Origem | Foto: Leo Freire

Ousados, eles foram os primeiros na cidade a arriscar abrir um restaurante que recebe os clientes exclusivamente neste formato, com menus que vão de 10 a 14 etapas. “No início, foi um grande desafio, porque as pessoas não estavam acostumadas e achavam que era rodízio. Depois, foram entendendo o conceito”, lembra Lemos.

Segundo ele, a ideia de colocar na mão do restaurante a responsabilidade pela escolha do prato – diferente de restaurantes à la carte, em que o cliente escolhe o que vai comer – ainda provoca certa resistência do público. “Já tive algumas pessoas falando ‘não, não vou no restaurante porque jamais eu vou aceitar que alguém determine o que eu vou comer’. Na verdade, nossa intenção não é determinar. Criamos uma sequência de pratos que se harmonizam. E nossa missão é trazer o entretenimento para a boca, para o paladar”, contextualiza.

O baiano Dante e a alemã Kafe Bassi comandam o criativo Manga, no Rio Vermelho | Foto: Reprodução/Redes Sociais

De 2016 para cá, a passos lentos, outros estabelecimentos na cidade foram se destacando ao oferecer o mesmo formato de serviço, porém não exclusivamente. É o caso do Manga, no Rio Vermelho, comandado pelo casal Dante e Kafe Bassi. Inaugurado em 2018, o espaço vem ganhando diversos prêmios nacionais, sobretudo pela ousadia e criatividade da dupla de chefs, que aposta também em um menu à la carte, em que o cliente pode escolher os pratos.

“No Manga, o menu-degustação é a opção mais procurada, mas há ainda uma pequena resistência a esse tipo de experiência, principalmente pelos clientes locais”, destaca Dante, que percebe uma mudança gradual. “Essa resistência era muito maior quando abrimos o restaurante há 6 anos atrás, imagino por não ser algo comum na cultura gastronômica do povo baiano até aquele momento. Essa evolução no interesse e a aceitação por menu-degustação na cidade nos traz otimismo e motivação para continuar”, diz o chef.

Essa pequena resistência que persiste, mas vem sendo quebrada, não intimida os chefs, mas ao mesmo tempo é decisiva na hora de optar pelo formato de forma não exclusiva, como é o caso do Restaurante Cöa, inaugurado há pouco mais de 6 meses no Rio Vermelho, próximo ao Manga.

O simpático Flavien, do Cöa, percebe sucesso do formato | Foto: Reprodução/Redes Sociais

“O menu-degustação é uma boa opção para quem quer experimentar um pouco de tudo, em porções reduzidas. A generosidade se acha nos sabores diferentes e no trabalho que é feito na cozinha para as preparações desse menu”, destaca Flavien Gallizioli. O chef suíço diz que, neste sentido, já sente que o menu-degustação é uma das opções mais pedidas no Cöa. Ele começou a oferecer a opção – lá, numa versão menor e diferente do Origem e do Manga, em apenas 4 etapas – no fim do ano, sob o nome de “Menu Experiência”.

Nos mesmos moldes, o Restaurante Guarany, no Cine Glauber Rocha, começou a servir uma opção em 4 etapas, que muda constantemente. “Inicialmente, quis realizar um menu quinzenal para testar ideias que nunca tinham saído do papel e me divertir com os cozinheiros. Então, era algo mais para a cozinha do Guarany se divertir, uma especie de laboratório. A aceitação foi surpreendente e acabou ganhando espaço nos serviços da noite”, explica o chef Pedro Meireles, que traz opções do próprio menu à la carte para o formato especial.

Chef Pedro Meireles se “diverte” com a equipe no menu em etapas | Foto: Reprodução/Redes Sociais

No caso do Guarany, o chef acredita que a “memória do soft open”, quando passou dois meses operando com menu-degustação exatamente como oportunidade de apresentar de forma estratégica seu trabalho, garantiu o sucesso do formato entre os clientes mais fieis. “Sempre houve uma cobrança pela volta do menu-degustação”.

Essa chance de “viajar um pouco” é uma das principais qualidades do formato, segundo a maioria dos chefs com quem conversamos. E, ao mesmo tempo, é também um desafio, principalmente para chefs que comandam seus estabelecimentos sem equipe numerosa. Grande entusiasta do menu-degustação, o chef Ícaro Rosa, do Restaurante Jiló, por exemplo, é um dos que estuda a implantação do sistema em sua casa, na Pituba.

Chef Ícaro Rosa estuda implantar o formato no seu Restaurante Jiló | Foto: Redes Sociais

Dividido entre oferecer uma opção que reúna em um único menu pratos que já são sucesso ou um cardápio mais elaborado, com pratos que “contem um história”, Ícaro encontra dificuldade na logística. “Eu queria oferecer uma degustação em que eu pudesse realmente viajar um pouquinho, sair um pouco da casinha, brincar mais com os ingredientes, poder ter mais possibilidades”, explica.

Jota, do Casa de Farinha, sentiu dificuldade em levar formato para Centro Histórico | Foto: Divulgação

Além da “liberdade de expressão incrível” que permite, como declara Jota Moraes, da Casa de Farinha, e de possibilitar que o cliente, em uma única visita ao restaurante, experimente opções reduzidas de pratos que demandariam 2 ou 3 idas ao local, o formato demanda criatividade constante. “O grande detalhe é conseguir inovar e, realmente, não se repetir”, diz o chef, que começou a operação do seu espaço exclusivamente com oferta do menu-degustação, mas voltou atrás, passando a oferecer o menu à la carte tradicional. “Existem muitas pessoas em Salvador que buscam esse menu, dentro e fora da cidade! Ainda recebemos mensagens perguntando se estamos oferecendo novamente o serviço. Mas, creio que o desafio, no meu caso, é trazer essa experiência para o Santo Antônio Além do Carmo”, explica Jota, reforçando que, em alguns casos, até um problema pessoal pode atrapalhar uma mente criativa.

“Menu Experiências” do Cöa | Foto: Reprodução/Redes Sociais

“O desafio é sempre o mesmo, que todos os pratos saiam com o maior cuidado, que nossa meta de qualidade seja respeitada. E além disso, de poder cuidar individualmente dos desejos de nossos clientes que queiram trocar alguns items no menu, por alergias, exemplo”, destaca Flavien, que também menciona a logística como uma das dificuldades do formato no Cöa. “Outro desafio é a comunicação entre o time do salão e da cozinha para poder sair as sequências de pratos com um tempo razoável entre eles. Não tão rápido, para não estressar o cliente, e sem demora, o que seria incômodo”, explica o suíço, que ganha coro do colega Pedro.

“A liberdade, às vezes, vem como uma faca de dois gumes e pode trazer uma experiência desastrosa, caso não haja uma cadência entre um prato e outro, uma lógica na construção dos pratos, uma escolha e execução boa de ingredientes mais exóticos e acabar assustando o comensal”, explica o comandante da cozinha do Guarany, reforçando ainda a dificuldade que é “convencer o cliente a ser ‘cobaia’ de uma experiencia gastronômica e sair da zona de conforto”.

Pedro Meireles finaliza um dos pratos do menu do Guarany | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Falando em deixar a zona de conforto, o Manga é um dos principais exemplos na cidade neste sentido. Com itens como pinaúna, peixe maturado, timo de boi frito e língua de boi maturada no cardápio, o restaurante enxerga as restrições de clientes como um dos principais desafios do formato. “O maior desafio é adaptar o menu-degustação que foi idealizado às eventuais restrições alimentares dos clientes. Além dos pratos pensados originalmente para o menu, o chef precisa ter alguns pratos e preparações reservas para mudar e adaptar o menu de modo que ainda seja agradável e harmônico para o cliente com restrições”, explica Dante.

Outro dificultador do menu-degustação, a depender da linha utilizada, é o preço, que pode chegar a R$ 650 numa versão harmonizada com vinhos, por exemplo. “Algumas pessoas acabam dizendo que é caro, porque não entendem que, para fazer um menu, você precisa de muita gente no serviço. Além disso, todo restaurante que faz menu-degustação, pode ter certeza, está utilizando o melhor produto disponível no mercado, que não é barato. Hoje, o nosso menu, comparando a São Paulo, é três vezes mais barato. E comparado à Europa, chega a ser dez vezes mais barato. E, mesmo assim, a gente trabalha no limite, até tendo prejuízo”, revela Fabrício, que, ainda assim, acredita no poder do formato. “A gente insiste porque entendeu que é uma ferramenta que transforma e ajuda a fortalecer a cultura local”, explica.

Etapa do menu-degustação do Manga, com insumos como o ouriço | Foto: Leo Freire

O público

Clientes assíduos compartilham da mesma opinião dos chefs sobre o formato. Como tudo na vida, há um lado positivo e outro negativo. “Eu acho que o menu-degustação é a melhor forma de você conhecer o conceito da casa, do chef, a história dele ou do local. Ao final, você tem uma compreensão melhor da dinâmica da casa. Em viagens, por exemplo, é uma forma muito boa de entender um pouco mais sobre a cultura do lugar, dos ingredientes que eles utilizam. Isso é bem legal”, destaca o advogado e produtor de conteúdo de gastronomia e de viagens Felipe Almeida (@almeida1984). Para ele, um dos principais pontos negativos é a duração do serviço, para o qual nem todos estão preparados ou dispostos. “Para quem quer algo mais trivial, mais rápido, o menu-degustação não é tão proveitoso. É um menu para ser feito com calma”, orienta.

Na mesma linha, o casal Celso Junior e Leonardo Lago, que não perde a chance de frequentar os melhores estabelecimentos dentro e fora de Salvador, acredita que o menu-degustação é uma boa oportunidade de experimentar vários pratos num mesmo jantar, com uma experiência que sai do trivial. “As diferentes texturas, temperaturas e sabores e a forma como a sequência dos pratos é pensada pelos chefs é o mais positivo”, destaca Celso, que é ator e diretor de teatro. Ao contrário de outros clientes, eles não vêem nada de negativo no formato, mas esperam parcimônia. “Só fico com receio de, se virar uma ‘moda’, começarem a surgir experiências ruins”, dizem.

Atum em água de tomate e limão siciliano do Jiló, atualmente no Menu Executivo | Foto: Elder Almeida

Com relação à recepção de Salvador ao formato, não existe uma opinião unânime. “Eu achei, quando Fabrício lançou essa forma de degustação aqui, que era uma decisão ousada. Em Salvador, não existem regras para as coisas darem certo e todo mundo ficava meio apreensivo. O tempo mostrou que quando você faz um produto de primeira qualidade, quando você tem serviço, se preocupa com o cliente, tem custo-benefício, fica mais fácil você manter, mesmo numa cidade em que boa parte da população não tem acesso nem condição financeira de ir num restaurante deste quilate, entendeu?”, defende Felipe.

Ele ganha apoio no discurso da jornalista e produtora de conteúdo Tereza Carvalho, do @proveieaprovei, para quem a experiência é positiva, dificuldades à parte. “Apesar da gastronomia na Bahia ter alcançado um patamar muito elevado nos últimos tempos, percebo que não há uma grande aderência (ao formato menu-degustação). Mas, o que eu posso afirmar é que já provei alguns menus aqui em Salvador infinitamente melhores do que já provei em restaurantes estrelados ou não, no Brasil e fora do país“, sentencia.

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