Bahia descartada? Físicos garantem que Cabral chegou no Rio Grande do Norte ao invés de Porto Seguro

Bahia descartada? Físicos garantem que Cabral chegou no Rio Grande do Norte ao invés de Porto Seguro

Redação Alô Alô Bahia

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Publicado em 26/11/2025 às 13:54 / Leia em 6 minutos

Um estudo publicado em setembro no periódico Journal of Navigation, da Universidade de Cambridge, propõe uma nova interpretação sobre o local de chegada dos portugueses ao Brasil em 1500. A pesquisa aponta que o primeiro desembarque não teria ocorrido em Porto Seguro, na Bahia, como tradicionalmente ensinado, mas no litoral do Rio Grande do Norte.

O trabalho foi desenvolvido pelos físicos Carlos Chesman, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e Cláudio Furtado, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Segundo os autores, foram analisados dados presentes na carta de Pero Vaz de Caminha e comparados com informações atuais sobre ventos e correntes marítimas relativos ao período da travessia. “Consideramos datas, localidades, distâncias, profundidades e relacionamos isso com os dados que temos à disposição hoje sobre ventos e correntes”, afirmou Chesman.

Considerada o primeiro registro escrito sobre o Brasil, a carta de Caminha foi enviada ao rei d. Manuel 1º e descreve a chegada da frota de Pedro Álvares Cabral a uma “terra nova”. Nela, o escrivão menciona o avistamento de um “grande monte, mui alto e redondo”, posteriormente chamado de Monte Pascoal, e o ancoramento da frota “à boca de um rio”.

De acordo com os pesquisadores, as descrições presentes no documento corresponderiam, na verdade, ao monte Serra Verde, localizado no município de João Câmara, e ao rio Punaú, que deságua na praia de Zumbi, em Rio do Fogo, a 72 quilômetros de Natal. Com o apoio de softwares e expedições de campo, eles afirmam que a rota descrita por Caminha se alinha com essa região do litoral potiguar.

“Pelas descrições da carta, eles percorreram cerca de 4.000 quilômetros saindo de Cabo Verde. Essa distância corresponde a rota que traçamos, que considera as correntes e os ventos. Também corresponde a distância até Porto Seguro, mas se a rota for uma linha reta, o que é improvável”, disse Chesman.

Os pesquisadores também defendem que o desembarque ocorrido no dia seguinte ao avistamento da terra teria sido feito na atual praia do Marco, localizada entre os municípios de São Miguel do Gostoso e Pedra Grande. O local recebeu esse nome devido a um marco português de 1501. Desde o século passado, intelectuais do Rio Grande do Norte, como Luís da Câmara Cascudo, já sustentavam a hipótese de que a chegada inicial teria sido nessa região. Segundo Chesman, essa ideia foi uma das motivações para o estudo, desenvolvido durante a pandemia de Covid.

A pesquisa, que não contou com a participação de historiadores, tem como objetivo reabrir o debate sobre a versão oficialmente difundida. Um colóquio científico para discutir o estudo está sendo organizado para o próximo ano no Rio Grande do Norte. “Nossa intenção é que a discussão seja reaberta. Nós fizemos uma pesquisa a partir da física e estamos apresentando ela a historiadores, para que eles tomem conhecimento.”

Apesar da nova proposta, outros estudos continuam sustentando a chegada pela Bahia. Um deles é o do almirante Max Justo Guedes, que em 1975 refez a rota da frota de Cabral e publicou a obra O Descobrimento do Brasil, utilizando também dados sobre ventos, correntes e as características das embarcações portuguesas.

A historiadora Ana Hutz, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), avaliou que a nova pesquisa se baseia exclusivamente na carta de Caminha, sem dialogar com estudos anteriores. “A ideia da chegada a Porto Seguro tem base em cartografias e outros estudos, que também refizeram essa rota. Esses estudos não são citados pelos autores.”

Questionada sobre possíveis impactos no ensino de história, a historiadora Juliana Gesueli, da PUC Campinas, afirmou que o debate ainda precisa ser aprofundado. “É preciso que haja mais pesquisas e evidências robustas para iniciar discussões que às vezes duram décadas para mudar os livros de história”, disse. “E precisa haver uma grande justificativa para mobilizar uma grande comunidade a fazer essa discussão.”

Ela ponderou ainda que, independentemente do local do primeiro desembarque, o foco do ensino está na formação da estrutura colonial. “A carta de Caminha é importante para datar o momento histórico, mas a ocupação portuguesa no Brasil só começou de fato a partir da década de 1530. Não acredito que possa causar uma grande mudança dos livros de história.”

Sobre a metodologia, os físicos catalogaram informações numéricas presentes na carta e analisaram dados referentes ao trajeto da frota de Cabral entre a saída de Cabo Verde, em 23 de março de 1500, e o primeiro avistamento de terras brasileiras, em 21 de abril. No dia seguinte, 22 de abril, segundo o documento, os portugueses teriam avistado uma “serra mui alta e redonda” a cerca de 30 a 40 quilômetros da costa.

Durante expedições realizadas no litoral do Rio Grande do Norte, os autores afirmam ter conseguido observar, a olho nu, elevações que se encaixariam na descrição da carta. “Na terceira expedição, três montanhas foram avistadas a aproximadamente 30 quilômetros da costa, próximas à praia de Maxaranguape. Viagens adicionais foram necessárias para melhor fotografar as montanhas e realizar medições batimétricas na região da plataforma continental”, diz o estudo.

A partir dessas observações, foi conduzida uma análise topográfica com o uso de imagens de satélite. “Com base nesse registro fotográfico, foi conduzido um estudo topográfico para identificar geograficamente essas três elevações. Utilizando imagens de satélite em 3D, determinou-se que a montanha mais ao norte, maior e mais larga, é provavelmente o verdadeiro Monte Pascoal, atualmente conhecido como monte Serra Verde”, afirmam os pesquisadores.

Os autores também relacionam o desembarque inicial de Nicolau Coelho, enviado em um batel para o primeiro contato com indígenas, à região da praia de Zumbi, em Rio do Fogo. Já um segundo desembarque, ocorrido após a frota ser forçada a seguir rumo ao norte devido a ventos e chuvas, teria acontecido cerca de dez léguas depois, na área correspondente à praia do Marco.

Chesman destacou ainda a relevância da física em investigações históricas. “A ciência é interdisciplinar. O que fizemos foi usar a física para analisar fatos históricos e há uma contribuição nisso. Se uma revista como a Journal of Navigation aceita publicar, é porque é relevante.”

Ana Hutz ressaltou que a história, por estar ligada à memória de um povo, deve permanecer aberta a debates. Já Juliana Gesueli avaliou que o estudo contribui para a aproximação entre áreas. “Isso abre novas janelas”, afirmou. “Mas, para que isso tenha solidez, ele precisa estar um pouco mais próximo da metodologia de historiadores. Mas em que medida, e aqui eu faço uma mea-culpa, nós também não nos aproximamos e não olharmos para essa perspectiva?”

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