Descupaê, São Luís! Saiba como Jimmy Cliff transformou Salvador na capital do reggae no Brasil

Descupaê, São Luís! Saiba como Jimmy Cliff transformou Salvador na capital do reggae no Brasil

Redação Alô Alô Bahia

redacao@aloalobahia.com

Com informações de Correio

Reprodução

Publicado em 24/11/2025 às 17:11 / Leia em 14 minutos

Do Recôncavo ao Pelourinho, é impossível imaginar a Bahia sem o ritmo vindo da Jamaica, mas que ganhou régua e compasso aqui. E Jimmy Cliff foi uma das portas de entrada deste gênero aqui em Salvador e deu ao nosso estado o status de verdadeira capital do reggae, com perdão aos irmãos maranhenses. No dia em que este ícone da música que influenciou os baianos regueiros nos deixou, aos 81 anos, mostramos a verdadeira origem desta música engajada, que fala só de amor, mas permanece marginalizada no meio musical. Afinal, quem trouxe e como o reggae chegou em solo baiano? Cliff foi um deles? Outro questionamento, não menos importante, é quase uma tensão diplomática: Qual a capital regueira do Brasil, Salvador ou São Luís do Maranhão?

Deixaremos a polêmica para o final. É difícil estabelecer o marco zero da entrada do reggae no país e, consequentemente, na Bahia, a primeira porta de entrada. No Maranhão, o reggae veio das ondas do rádio, onde era possível captar emissoras caribenhas pela proximidade. Na Bahia, depende do ponto de vista. Claro que existem alguns consensos, mas muito diversificados, como se o reggae tivesse entrado de várias formas, criando corpo em dois pólos: recôncavo e Pelourinho. Os estudos são raros. A mestra em Estudos Étnicos, Maria Bárbara Vieira Falcón, escreveu o livro O Reggae de Cachoeira: produção musical em um porto Atlântico, mais focado no turbilhão regueiro em Cachoeira. Sobre a origem, poucos especialistas musicais se arriscam a cravar sua origem.

A primeira fagulha foi o Festival Internacional da Canção, de 1969, no Rio de Janeiro, quando tivemos a visita de Jimmy Cliff, mas sem chamar muita atenção. Então, não conta. Passou quase despercebido. Contudo, um ano parece ser o mais citado como um embrião do reggae em solo brasileiro: 1972.

Além de ser o início da carreira de Edson Gomes, que na época já fazia algo bem parecido com um samba-reggae, foi também em 1972 que, pelo menos oficialmente, o primeiro brasileiro falou o termo ‘reggae’ na música, literalmente. Só pra variar, foi um baiano: Caetano Veloso gravou a música Nine Out Of Ten, no disco Transa, onde ele escreveu “Walk down Portobello road to the sound of reggae”. Em tradução livre, ele conta que andava pelo país em que esteve exilado, enquanto cantava reggae. Na Inglaterra, Bob Marley já era uma febre, o que despertou a atenção e admiração de Caê.

Também em 1972, o Grupo Arembepe, formado pelos músicos Carlos Lima, Chico Evangelista, Kiko Tupinambá e Dinho Nascimento, ensaiou os primeiros acordes regueiros, quase por coincidência. Músicos consideram esta banda soteropolitana como a primeira que assumiu um ritmo semelhante ao da Jamaica. Eles gravaram um álbum em 1974, com a música ‘Lá na Esquina’, quase uma mistura de soul com reggae.

Contudo, o grupo optou em construir a carreira musical em São Paulo, onde conheceram um disco de Bob Marley trazido de Londres pela esposa de Chico Evangelista. Depois disso, o baiano Evangelista, falecido em 2017, assumiu a postura regueira e gravou a primeira canção com ritmo jamaicano, de forma literal: o Reggae da Independência, de 1978, uma homenagem ao 2 de Julho.

“Nosso repertório tem muito reggae desde sempre. É difícil cravar, mas muitos especialistas colocam o Grupo Arembepe como primeira banda a fazer este ritmo no país. No nosso primeiro disco, a música Lá na Esquina mostra o ritmo. Claro, era mais um ritmo entre tantos que fazíamos. Apenas Evangelista, já fora do Arembepe, assumiu a postura de cantor de reggae”, conta o músico Kiko.

Em 1979, entra em campo Gilberto Gil. Com acesso ao reggae e sob forte influência de Bob Marley, Gil grava o álbum Realce e coloca no repertório Não Chore Mais, uma versão da canção de Bob Marley, No Woman No Cry. No ano seguinte, em 1980, houve uma invasão meteórica que transformou o Pelourinho e toda nação regueira baiana: o show de Gil com Jimmy Cliff, que já não era aquele desconhecido de 1969, no Rio. O show lotou a Fonte Nova, mas não dá para considerar como o marco zero (me perdoa, Gil). No Pelourinho, desde 1978 já existia um bar que tocava Jimmy Cliff e Bob. Contudo, o Bar do Reggae ganhou este nome justamente na semana do primeiro show de Cliff e acabou virando referência. O próprio cantor frequentava o bar quando vinha ao Brasil.

Bar do Reggae e a influência de Jimmy Cliff na Bahia

Estudo

Guitarrista e um dos fundadores do Adão Negro, Marcos Guimarães guardou um pouco a guitarra e decidiu estudar sobre o reggae na Bahia. Ele desenvolveu o trabalho acadêmico ‘Delineando a Identidade do Regueiro Soteropolitano’, pela Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas da Ufba. Ele não chegou ao denominador comum da origem, mas não foi por falta de pesquisa. Para Guimarães, tentar delimitar um marco zero é limitar todas as variações históricas do reggae na Bahia. Segundo o músico e cientista social, o reggae baiano é difuso.

“O que a gente descobriu na pesquisa, como sociólogo, é que tinham dois detalhes sobre este Marco Zero do reggae no país e na Bahia, especificamente. Primeiro, não é possível identificar a origem, pois o reggae entrou aqui de maneira difusa. Era uma pessoa que trazia um álbum de Marley e tocava no Pelourinho, um local que já vivia um período bem musical, com a entrada da música caribenha, como merengue, lambada… Muita gente não percebe, mas o reggae também é caribenho”, explica Guimarães, que junta isso ao movimento negro que buscava reconhecimento em Salvador.

“Tem também todo o movimento negro da capital, toda a reafricanização do Carnaval de Salvador, principalmente com os blocos afros. Facilitou esta entrada e difundiu o reggae de forma natural. Já existia um movimento negro se formando e o pessoal via o reggae também como parte crítica da própria existência do negro da nossa sociedade. Entrou no pacote, né? Engrossou o caldo”, completa.

Nesta ebulição do reggae no Centro Histórico, foram construindo peças que determinaram o curso do ritmo na cultura baiana. No estudo de Guimarães, um dos poucos dedicados a criação do reggae na Bahia, assegura que “o Pelourinho torna-se então um ícone central nesse processo de resgate da tradição negro-mestiça. O reggae/Rastafarianismo contribui vigorosamente para a síntese ocorrida no processo de reafricanização da cidade de Salvador”. O start ocorre quando surge o Bar do Reggae, o primeiro temático do estado, fundado em 1978 (portanto, antes de Gil e Cliff), sob a tutela do regueiro e policial aposentado, Albino Apolinário, que deu o nome oficial com o show de Cliff, em 1980. Mas a temática já existia.

“Minha mãe tinha um boteco popular que tocava samba, merengue, essas coisas. Um dia ela me deu dinheiro para comprar um discão de samba, voltei com um de Bob Marley. Foi um auê. Eu só podia tocar quando ela não estava, pois a única coisa que sabíamos sobre o reggae era que o rastafari precisava ter dreads, não usar sabão e fumar muita maconha”, lembra Albino. Contudo, bastava tocar Bob para o bar lotar. E a mãe acabou cedendo, vindo outros discos, como de Cliff.

“A porra já estava na alma do Pelourinho. Quando fundei o Bar do Reggae, a polícia não gostou. Dizia que era lugar de tráfico de drogas, de putas, de tudo. Nós fechávamos ruas inteiras de gente, a polícia odiava. Até que jogaram a gente para a Praça do Reggae, ‘limpando’ a requalificação do Pelô”, lembra Albino. A Praça do Reggae foi inaugurada em 1999 e está abandonada desde 2011. Atualmente Albino tem outro bar, mas com a mesma temática, na rua Gregório de Matos, no Pelourinho.

Albino lembra que o reggae teve seu tempo de ouro entre os anos 80 e início dos anos 2000. “Quando me tornei policial, mantive o Bar. Uma vez vi Alpha Blondy no antigo Iguatemi. Estava de farda, o cantor não me deu bola, a farda não é algo que o regueiro gosta. Desabotoei a farda e mostrei a camisa de Bob Marley que estava por baixo. Ele abriu o sorriso e veio falar comigo. Sempre fomos marginalizados pela polícia, inclusive eu, na própria corporação. O reggae pulsava na cidade, mas todos que gostavam eram taxados de marginais. Mas como começou o reggae baiano propriamente dito? Não sei dizer, mas creio que foi aqui na Bahia e não no Maranhão”, indaga Albino.

Nengo e Edson

Se a entrada foi de diversas formas, um nome pode ser o difusor e pai do reggae encorpado com influências baianas: Nengo Vieira. Menino de Cachoeira, já batia baba com outro garoto que cantava samba, de nome Edson Gomes. Em Salvador, Nengo foi apresentado ao reggae ainda em 1977, quando o ritmo engatinhava. “Minha família era musical. Gostava de samba, chorinho, MPB… Com 17 anos, conheci o disco de Bob, Rastaman Vibration. Gostei, mas não me chamou atenção. Somente em 1980, quando comecei a fumar machonha, o reggae entrou no meu coração e não quis saber mais de nada, só de fumar e cantar reggae”, conta Nengo.

Três anos depois, um encontro mudaria para sempre o destino do reggae baiano, conhecido mundialmente como reggae do recôncavo. Em 1983, Nengo, já tocava no Estúdio 5 e fazia palhinhas com Lazzo Matumbi, outro difusor do reggae que também cantou com Cliff. Enquanto isso, em Cachoeira, Edson Gomes já tinha composições eternizadas, como Malandrinha e Viu, mas o reggae man cantava suas músicas com elementos do samba e soul. Em Cachoeira, ele era conhecido como Tim Maia do Recôncavo. Suas composições eram tocadas ao som de um samba percussivo, quase um samba-reggae.

“Eu apresentei o reggae a Edson. Cruzei com ele em 1983, num festival de música em Cachoeira. As composições de Edson eram diferenciadas, porém virgem de musicalidade. Quando o reggae entrou no circuito, tudo mudou e ali nascia o reggae baiano autêntico. Uma música engajada, de resistência. Apresentei o reggae à nossa referência, né? Sem falsa modéstia, não sei se surgiria o reggae que conhecemos se eu não tivesse cruzado no caminho de Edson. Criamos a voz da resistência. Nós sentimos tudo que cantamos. Sentimos a dor, sentimos o racismo, o preconceito e a necessidade… Vivenciamos nossas músicas”, lembra Nengo.

Ainda em 1983, Nengo e Edson iniciaram uma parceria que determinou o rumo do reggae e o sucesso que estourou entre os anos 80 e os anos 2000. Eles fizeram o primeiro show de reggae genuinamente baiano em Salvador, no Forte de Santo Antônio, no Barbalho, tudo com recurso próprio. Foi o primeiro show de Edson na capital, inclusive. “Aquele primeiro show o reggae jamaicano tinha algo que me incomodava do ponto de vista do encaixe com as músicas. O contrabaixo tinha pouca nota, pedi para incrementar, crescer o tempo. Ensaiamos tudo dias antes do show. Com estes experimentos, acabamos, eu e Nengo, criando este ritmo conhecido como reggae do recôncavo. Foi aí que músicas como Malandrinhas saiu do ritmo do samba e entrou no reggae”, lembra Edson Gomes.

Curiosamente, em 1987, um ano antes de Edson lançar seu primeiro álbum, a cantora Sarajane gravou a música Rastafary, no seu primeiro disco, Descobrimento do Brasil. Se Edson já era sucesso, despertou interesse das gravadoras que se dedicavam ao axé.

Um ano depois de Sarajane gravar Rastafary, finalmente o reggae resistência ganha corpo, com o primeiro álbum de Edson, com sucessos como Malandrinha, Samarina, Sistema é um Vampiro, Viu e Rastafary. Não tinha jeito. Ali morreria o Tim Maia do Recôncavo e nascia o rei do reggae no país. Porém, Cachoeira não estava satisfeita e queria mais. Nos anos 90, cantores do axé gravavam o ritmo e o Olodum criava o samba-reggae. Mas o reggae de Cachoeira preferia manter o estilo de música engajada. Dançante, mas engajada. Nengo Vieira tinha uma banda chamada Remanescentes em que um garoto de 17 anos, também cachoeirense, tocava guitarra: Sine Calmon.

“Sine ficava na frente do nosso palco doido para subir. Ali é meu filho”, lembra Nengo. Em 1997, já como líder da banda Morrão Fumegante, Sine Calmon ganha o país com a música Nayambing Blues, que se tornou a canção mais tocada no carnaval. Apesar da febre, a música não ganhou como a melhor da folia. A Latinha, da Timbalada, venceu.

“Foi algo bem interessante, pois foi a primeira vez que tiveram de colocar uma nova premiação, a ‘de música mais tocada’, para dar a premiação para Sine Calmon e Banda Morrão Fumegante. De certa forma, foi uma forma de mostrar que o reggae já era marginalizado no polo da música baiana. É uma música engajada, da contracultura. É difícil ter espaço que merece”, conta Serginho, que foi músico da Banda Morrão Fumegante e hoje é o líder de outra referência do reggae no país, o Adão Negro.

Sine Calmon abriu as portas para a nova geração do reggae baiano, longe de Cachoeira e abraçando as ruas de Salvador. Bandas como Adão Negro, Diamba, Mosiah e Scampo saíram um pouco daquele ritmo original do recôncavo e adotaram em suas músicas outras tendências, como o rock, rap e surf music. Conhecido por críticos da época como Neo Reggae, essas bandas ganharam espaço também no meio acadêmico, fazendo constantes shows nos campos da Ufba, no final dos anos 90 e início dos anos 2000.

“A gente procurou ser verdadeiro com a gente, pois não éramos do recôncavo. O Adão tinha a influência natural de Edson Gomes, mas a gente sabia que não era ele. A gente falava daquilo que nos incomodava, com engajamento, mas tínhamos uma experiência e outras formas de acessar a realidade, como no movimento estudantil, principalmente nesta influência do adão nas universidades. É massa, pois existe um respeito mútuo nestas realidades”, conta Serginho. “Sem contar que esta geração do reggae surgiu junto com outras tendências importantes na música baiana, como a banda Inkoma, de Pitty, Catapulta, Dois Sapos e Meio… Tocamos juntos em shows, era uma variação muito interessante”, conta.

Bar do Reggae e a influência de Jimmy Cliff na Bahia

Polêmica

Serginho não foge da maior polêmica do reggae no país: qual a capital brasileira do ritmo? “Esta pergunta tem várias respostas possíveis. O Maranhão tem um fenômeno específico, muito bonito e verdadeiro com o reggae. Eles possuem um ponto específico muito interessante de transformar tudo em reggae. Mas aí eu provoco: quantos artistas nacionalmente conhecidos saíram do Maranhão? A lista começa e termina com Tribos de Jah. Se você for olhar por este aspecto, eu digo para todos que este binômio Cachoeira e São Félix está para o reggae, assim como Seattle está para o rock americano. Edson Gomes, Sine, nengo, marco oliveira, geraldo cristal… do ponto de vista artístico que imprimiram um estilo musical brasileiro, com certeza é a Bahia”.

Se não é possível determinar o marco zero, tampouco cravar onde está o melhor reggae, o importante é que o reggae nunca perca sua essência engajada. Jimmy Cliff foi uma das portas que apresentou o reggae ao baiano, que moldou à sua forma e semelhança. Edson Gomes fala uma coisa interessante nos seus shows. Ele diz que o reggae toma a pessoa pela dança, pela musicalidade e pelo balanço, mas a letra também faz a pessoa pensar. Afinal, baiano não come reggae de ninguém…

Leia mais em CORREIO

Compartilhe

Alô Alô Bahia Newsletter

Inscreva-se grátis para receber as novidades e informações do Alô Alô Bahia