Nos Seus Sonhos chega à Netflix como aquela animação que parece “sair da prateleira Pixar”, mas com sotaque próprio. A trama acompanha Stevie e seu irmão mais novo, Elliot, dois pré-adolescentes em plena turbulência familiar que acabam atravessando, literalmente, a fronteira entre realidade e imaginação. A partir daí, tudo vira uma viagem pelo absurdamente lógico mundo dos sonhos, onde cada cenário exagera sentimentos que eles não conseguem colocar em palavras na vida real.
Sem revelar nada essencial da história, dá para dizer que o filme aposta num equilíbrio entre aventura colorida e drama intimista. A jornada pelo reino dos sonhos é, na superfície, um grande jogo de fases cheias de criaturas estranhas e regras mágicas; por baixo, o que está em disputa é a forma como essas crianças vão lidar com a ideia de que talvez a família “perfeita” simplesmente não exista.
Uma aventura fantástica ancorada em conflitos reais
O ponto de partida de Nos Seus Sonhos é bem pé no chão: a sensação de que a casa está desmoronando emocionalmente. Os pais de Stevie e Elliot atravessam uma crise, e os filhos fazem aquilo que crianças fazem de melhor: inventam um plano mirabolante para consertar o que não controlam. A missão de encontrar o Sandman, figura mítica capaz de conceder o desejo de uma família ideal, nasce desse desespero silencioso.
É aqui que o filme ganha força temática. Cada parada no caminho funciona como metáfora de um sentimento difícil — medo de separação, culpa, raiva, saudade —, mas o texto nunca explica demais. O espectador vai conectando os pontos pelo comportamento dos irmãos: um mais controlador, tentando manter tudo sob rédea curta; o outro, mais espontâneo, embarcando na fantasia como se fosse um jogo sem consequências. A relação entre eles vira o coração da história.
Direção com DNA Pixar, mas buscando uma voz própria
Alex Woo traz para Nos Seus Sonhos a bagagem de anos trabalhando em clássicos da animação. Isso aparece no ritmo das cenas, na economia de diálogos explicativos e no jeito como o humor entra sempre a serviço da emoção, nunca apenas como piada solta. A co-direção e o trabalho de roteiro reforçam essa sensação de filme muito “pensado em storyboard”, com set-pieces bem desenhados e transições fluidas entre o cotidiano e o onírico.
Ao mesmo tempo, o longa tenta se afastar da sombra Pixar com um tipo de humor um pouco mais escrachado e referências pop mais evidentes, sobretudo em números musicais e na forma como o universo dos sonhos é povoado por versões distorcidas de elementos do dia a dia. O resultado é uma animação que não chega a reinventar a roda, mas mostra um estúdio ainda jovem tentando encontrar uma assinatura própria.
Humor, trilha e a girafa que rouba a cena
Se existe um personagem que deve ficar na cabeça do público, é a girafa de pelúcia rabugenta que acompanha a dupla na missão. A figura cínica, meio mal-humorada, é o contraponto perfeito para o idealismo dos irmãos e rende alguns dos momentos mais engraçados e estranhos do filme. A dublagem (tanto na versão original quanto na brasileira) abraça o exagero, sem medo de soar ridícula.
A trilha sonora mistura temas orquestrais clássicos de aventura com intervenções pop bem-humoradas. Em certos momentos, o filme flerta com a paródia musical, brincando com hits conhecidos e adaptando letras para o contexto absurdo do mundo dos sonhos. É um recurso que ajuda a manter o ritmo leve mesmo quando o subtexto é mais pesado.
Visual inventivo e mundos que funcionam como metáforas
Visualmente, Nos Seus Sonhos é o tipo de animação que pede para ser pausada só para observar o cenário. Cada reino onírico define paleta, textura e lógica próprias: há espaços que parecem ter sido desenhados por mãos infantis, com linhas tortas e formas exageradas; outros evocam pesadelos mais sombrios, mas ainda assim filtrados pelo olhar de uma criança, sem cair em terror explícito.
Essa construção visual reforça o subtexto psicológico. Ambientes que desmoronam, corredores que se alongam demais, objetos cotidianos que ganham proporções ameaçadoras — tudo comunica como Stevie e Elliot percebem o mundo adulto ao redor. A montagem alterna bem entre esses espaços e cenas rápidas no “mundo real”, lembrando o público o que está em jogo sem precisar martelar a mensagem.
Limites da fórmula e onde o filme joga seguro demais
Do ponto de vista narrativo, Nos Seus Sonhos não esconde as costuras. Quem já viu boa parte das grandes animações dos últimos anos provavelmente vai reconhecer a estrutura: introdução doméstica, portal para um outro mundo, aliados excêntricos, vilões que refletem medos internos e uma reta final que passa por um grande confronto e uma lição de aceitação.
Isso não significa que o filme seja menos eficaz, mas reforça a sensação de segurança criativa. Em alguns trechos, dá vontade de ver a história se arriscar mais, seja abraçando de vez o nonsense dos sonhos, seja mergulhando um pouco mais fundo no desconforto das situações familiares. O longa prefere suavizar as bordas e manter tudo em um registro adequado para crianças pequenas — o que é compreensível, mas limita o impacto emocional para adultos que esperam algo na linha de um Divertida Mente ou Viva – A Vida é uma Festa.
Camadas emocionais que conversam com adultos e crianças
Ainda assim, há momentos em que Nos Seus Sonhos acerta em cheio, especialmente quando abandona a necessidade de ser “engraçadinho” e deixa a vulnerabilidade dos personagens aparecer. A culpa que as crianças carregam pelo estado da família, a dificuldade dos pais em explicar o que está acontecendo, a frustração de perceber que nem todo desejo pode ser atendido — tudo isso está ali, mesmo filtrado por uma linguagem leve.
Para os pequenos, o filme funciona como uma aventura sobre coragem, imaginação e companheirismo entre irmãos. Para os adultos, há um lembrete incômodo (e bonito) de que tentar proteger os filhos de qualquer dor talvez não seja possível — e que parte do crescimento está em aprender a caminhar com esses medos, não em apagá-los.
Nos Seus Sonhos é uma boa pedida para quem procura uma animação de fim de semana com cara de grande produção, mas com frescor suficiente para não parecer apenas mais uma cópia de sucessos antigos. A fantasia é inventiva, o humor funciona, os personagens têm carisma e o filme traz uma mensagem sincera sobre aceitar que a vida — e as famílias — são inevitavelmente imperfeitas. Pode não ser a nova revolução da animação, mas entrega exatamente aquilo que promete: uma viagem divertida e emotiva pelo mundo dos sonhos que rende ótimas conversas depois dos créditos.