Conheça Camila, baiana que passou fome, foi presa por furtar comida, mas hoje brilha nas passarelas

Conheça Camila, baiana que passou fome, foi presa por furtar comida, mas hoje brilha nas passarelas

Redação Alô Alô Bahia

redacao@aloalobahia.com

Com informações do CORREIO

Bruno Varoto

Publicado em 15/11/2025 às 12:07 / Leia em 10 minutos

Nas suas infinitas fotos, ela se confunde com uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel. Com seu olhar desafiador, um jeito sereno e ao mesmo tempo forte, Camila dos Santos fatalmente seria uma inspiração para a música de Caetano Veloso. A história dela caberia não apenas numa canção, mas num livro ou em qualquer enredo de filme que emociona. Se hoje ela é uma modelo de sucesso ganhando o espaço merecido, estampando sua pele de ouro marrom em capa de revistas e marcas famosas, essa baiana de 30 anos esconde na sua beleza uma besteira de menina que ela não pôde dizer não: por conta da fome, furtou e foi presa. Aprendeu da pior forma que o mal é bom, e o bem, cruel.

Camila consegue juntar o retrato do Brasil na sua história: fome, estrutura familiar e educação. É filha de Antônia Lúcia dos Santos, mais uma entre 11 milhões de brasileiras que criaram seus filhos sem a presença do pai. No caso, três: além de Camila, Luana e Daniel. Camila também faz parte da estatística que aponta que 9,1 milhões de brasileiros abandonaram a escola sem terminar o ensino básico. Ela só foi até o oitavo ano.

Este ciclo familiar de Camila também fazia parte das 2,5 milhões de pessoas que passam fome no país. E, quando Camila viu seus dois irmãos mais novos chorarem de fome e a mãe não ter dinheiro para comprar comida, resolveu furtar, em março de 2018, aos 24 anos. Em plena terça-feira, num mercado atacadista na Calçada, em Salvador, colocou na sua bolsa biscoito, miojo, desodorante e um sabonete. Foi pega antes de sair do mercado, apanhou do segurança e foi presa em flagrante.

Ela ainda ficou quatro dias presa na delegacia de Brotas antes de conseguir responder em liberdade após audiência de custódia, que ocorreu na Central de Flagrantes. “Minha mãe estava passando dificuldade com os meus irmãos e eu chegava pedindo ajuda, emprego, mas ninguém me ajudava. Então, o desespero tomou conta da minha cabeça e fiz o ato de pegar as coisas no mercado para levar pra casa. E foi o que aconteceu: acabei sendo presa. Quiseram me dar seis anos de cadeia, mas como era réu primário, respondi em liberdade”, lembra Camila. No processo, os objetos que ela tentou furtar custaria para o mercado atacadista um prejuízo de R$ 62,29.

Foram os dias mais difíceis da vida dela. “Foram quatro dias sem tomar banho e sem comer, pois a comida de lá já chegava estragada. Nós dividimos as celas com ratos”, resume.

Mesmo com o valor irrisório furtado, o que poderia ser motivo de excludente pelo princípio da insignificância, Camila respondeu por furto qualificado, que tem um agravante na pena, pois estava com uma amiga (concurso de pessoas). A Defensoria Pública da Bahia defendeu Camila e conseguiu absolvição. Se não fosse a defensora pública Soraia Ramos, certamente ela pegaria entre dois e oito anos de reclusão. Regime fechado.

“O capitalismo vai excluir o pobre que não é útil. E qual a melhor forma de excluir? Através do sistema penal. Isso é tão enraizado que nem precisa ser intencional. É natural. Se uma pessoa dessa não servir ‘para nada’ na sociedade, então o sistema pensa: vamos excluir”, revela Soraia, que acrescenta: “Atualmente trabalho na vara de crimes tributários. Se alguém sonegar milhões, a pena é de um ano. Já no caso de Camila, por um furto qualificado, a pena dobra. Você pode sonegar milhões e ainda assim teria metade da pena dela. É revoltante.”.

Vale lembrar que o Código Penal Brasileiro é datado da década de 40. É mais velho que a nossa própria Constituição Federal, de 1988. Uma condenação teria uma carga eterna na vida de Camila. “Quantas outras Camilas têm aí, né? Porque ela foi um caso que conseguimos alcançar, mas tem tantas outras que estão aí respondendo, esquecidas. É desprezo mesmo. Uma menina favelada, negra, sem estudo… Mas com antecedentes. Onde ela conseguiria um trabalho com sua vida carimbada porque furtou para comer? Quem ganha com isso?”, completa Soraia.

Camila seguiu em frente. Contudo, pouco tempo depois de se livrar do processo, sua mãe faleceu de câncer, em plena pandemia. Ficou apenas ela e os irmãos, em um dos piores momentos da história. Novamente a geladeira estava vazia. Vizinhos e familiares ajudaram e Camila acabou sendo uma das personagens do programa Profissão Repórter, da Rede Globo. Lá, ela mostrava a dispensa sem alimento e um pouco de feijão, arroz e ovo no fogão. Mesmo assim, não perdia o humor. “De diabetes aqui ninguém morre. Não temos nem açúcar”.

Mas foi nesta mesma reportagem que Camila, já com 26 anos, plantou uma sementinha de esperança. Na reportagem, ela disse que sonhava em ser modelo. Inclusive, sua mãe já tinha pago um curso e ela chegou a participar de seletivas, mas sem sucesso. “Eu já ouvi tanto não, tipo que eu não era capaz, que eu era feia, de não darem oportunidade pra gente. Eu chegava num lugar primeiro que as brancas, mas não era a escolhida”, conta, ao CORREIO, sobre sua primeira tentativa.

A segunda chance também veio. Após a reportagem, ela conseguiu ter uma pitada de esperança. Foi até para São Paulo, mas… “Me chamaram para alguns trabalhos depois da matéria do Profissão Repórter. Foram na minha casa, na época que eu estava passando muita dificuldade. Muita gente me ajudou. Depois fui pra São Paulo, mas não deu certo, voltei para Salvador. Voltei para minha realidade e continuei minha vida…”, lembra.

Mas ela, ao mesmo tempo, diz que tudo vai mudar. E mudou, em pleno carnaval. Em 2023, quando a folia soteropolitana voltava depois de dois anos suspensa por conta da Covid-19, Camila trabalhava vendendo comida no circuito do Pelourinho, quando a modelo Grazi Muniz olhou para a baiana do Uruguai e viu ali uma mulher de sucesso.

“Era uma energia muito carnavalesca, assim, uma noite no Pelourinho. E eu lembro que tinha alguma coisa, especialmente nela, que me chamou até lá, porque eu estava do outro lado da rua e vi aquela moça com o pescoço largo, alta, e algo branco na cabeça. De longe, achei que era um turbante. Falei com uma amiga que estava comigo: vamos até aquela moça ali”, lembra Grazi. O que ela achou que era um turbante, na verdade era uma touca que Camila usava para vender lanche no carnaval.

Daí me apresentei pra ela, falei que era modelo de São Paulo, e ela me falou que já tinha tentado dar os primeiros passos, mas era uma coisa muito difícil, pingada. Foi uma coisa muito de Deus, uma coisa muito dela, da luz dela, porque depois daquele momento eu fiquei cheia de felicidade. Eu sabia que era um novo nome [na moda], uma nova cara, uma expectativa e uma história maravilhosa”, completa Grazi.

A partir daí, aquela menina que furtou e quase foi condenada, estava finalmente iniciando sua carreira aos 29 anos. “Grazi Muniz se tornou minha amiga. Ela me viu vendendo lanche no carnaval e disse: ‘você é modelo, você é muito bonita, não era pra vender lanche’. Imagina ouvir isso depois de tudo que passei. Imagina!?”, lembra Camila.

“Achei que isso nunca mais ia acontecer, pela idade. Nada é fácil, principalmente sonhos. Sonho quando ele vem é difícil. Ou é pra você encarar ou é pra você desistir. E eu tô encarando ele até hoje, entendeu? Eu já ouvi tanto não, menino. Já passei por tanta coisa em Salvador, até presa eu fui. E hoje eu não acredito quando alguém me chama para fazer trabalhos, porque eu penso: ‘Meu Deus, agora estão dizendo sim pra mim’”, confessa, emocionada.

Mesmo iniciando sua carreira quando já estava prestes a entrar na casa dos 30 anos, a baiana do Uruguai já estampou até a capa da revista Elle, a mais conceituada no mundo da moda. Foi o ápice para ela. Tem mais. Ano que vem será sua primeira viagem internacional, que ela guarda segredo. É tanto trabalho que esta matéria já era para estar pronta há duas semanas. Mas cadê tempo para Camila achar entre um trabalho e outro?

Ao invés de ter muito ódio no coração por tudo que ela passou, a Tigresa resolveu dar muito amor. Atualmente mora em São Paulo, onde pode pagar um aluguel de R$ 2 mil, por mês. Seus irmãos moram com a tia, no Uruguai, mas não falta nada para eles. “Hoje eu consigo manter uma alimentação pros meus irmãos todo mês. Quando eles me pedem uma roupa nova, hoje eu consigo dar”. No mesmo lugar em que ela mostrou sua geladeira vazia, está sendo construída outra casa no lugar, com tudo novo e com o suor dela. Ela não quer perder suas raízes. E nem a turma do Uruguai quer ela longe de lá…

“Quando eu chego no Uruguai o povo começa a gritar e eu fico morta de vergonha. ‘Chegou a famosa!. As meninas querem ser modelo como eu, os meninos falam: ‘A Cami chegou, vamos abraçar ela’. Às vezes eu até choro. Meu Deus, eu nunca imaginei que isso aconteceria. Eu venci, mesmo tendo vindo da favela, mesmo sendo preta, mesmo passando fome. E falo pra todos no bairro: nunca desistam, porque eu também achei que não tinha mais jeito. E olha onde eu tô hoje”. Camila virá para Salvador no final do mês. Apenas para curtir as festas de fim de ano com a família.

Na verdade, Camila diz que não venceu. Apenas que está vencendo, no gerúndio. Os desafios continuam, assim como as dificuldades. Contudo, dá para enfrentar quando a barriga está cheia. “Sou modelo da Cidade Baixa de Salvador. Do Uruguai, que está vencendo. E é isso. Em breve eu vou estar aí fora do Brasil, ser uma modelo estourada, negra e com mais de 30 anos. Muitos vão falar de mim. Eu vou ser muito lembrada. Não pretendo ser rica, mas pretendo fazer meu sonho se tornar liberdade, viver de forma digna, poder dar comida para meus irmãos, ter minha casa e nunca mais passar necessidade”, completa, imponente.

Para Camila, não existe um conto de fadas perfeito. O que importa é que a vida digna, o sonho e a natureza feliz vivam sempre em comunhão. E assim, nossa tigresa poderá ser mais do que um leão.

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