Os crânios de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e de Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita, passaram duas décadas guardados na casa da família antes de seguirem para análise científica.
Desde 2021, as peças estavam no Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP, onde permaneceram por três anos e meio. O estudo não conseguiu extrair DNA, mas confirmou a identidade do casal com base em registros históricos e evidências materiais.
A guarda doméstica começou no início dos anos 2000, quando as netas foram avisadas de possíveis mudanças no Cemitério Quinta dos Lázaros, em Salvador, onde os restos mortais estavam sepultados.
Temendo que se perdessem, Expedita Ferreira, única filha do casal, hoje com 92 anos, e sua filha Gleuse, de 69, decidiram levar os crânios para casa, em Aracaju. “Guardava como se guarda uma roupa ou um sapato”, disse Expedita em entrevista ao g1. Segundo Gleuse, eles eram retirados da caixa “de vez em quando” para “tomar sol”.
Os restos mortais têm trajetória longa e marcada pela exposição pública. Após o grupo de Lampião ser morto na Gruta de Angico, em 28 de julho de 1938, na divisa de Sergipe e Alagoas, onze cabeças de cangaceiros, incluindo as de Lampião e Maria Bonita, foram exibidas na escadaria de uma igreja em Piranhas (AL).
Em seguida, foram levadas ao IML de Maceió e depois ao Instituto Nina Rodrigues, em Salvador, onde ficaram expostas de 1944 a 1969. Só então foram sepultadas no cemitério soteropolitano.
O exame na USP revelou desafios distintos para cada peça. O crânio de Maria Bonita estava praticamente intacto, enquanto o de Lampião chegou fragmentado, exigindo um processo minucioso de reconstituição.

Crânio reconstruído de Lampião (à esq.) e o de Maria Bonita (à dir.) | Foto: G. Ceccantini
Segundo relatório, o material apresentava sinais de decapitação e fraturas provocadas no momento ou logo após a morte, além de indícios de má saúde bucal. Pesquisadores apontam que o manuseio excessivo e o armazenamento em substâncias como querosene comprometeram qualquer vestígio genético.
Para o historiador José Guilherme Veras Closs, responsável pelo estudo, o objetivo é olhar além da imagem de heróis ou vilões: “O cuidado com o remanescente humano tem que ser igual ao cuidado com um ser vivo”.
A família planeja agora construir, em até três anos, o Memorial do Cangaço, que reunirá armas, joias, fotografias e até um cacho de cabelo de Maria Bonita. O espaço, segundo o advogado Alex Daniel, pretende ser também um centro de estudos sobre o tema, com curadoria da própria família.

Objetos guardados pela família | Foto: Arquivo Pessoal