Maio é tradicionalmente um mês de muita chuva em Salvador. Só nas duas primeiras semanas deste ano, o volume de precipitação foi 11% maior do que a média histórica. Ainda assim, os transtornos recentes não se comparam ao temporal de 1989, que provocou uma série de deslizamentos de terra, entre eles um dos mais marcantes, que soterrou o Motel Mustang, tragédia que completa 36 anos nesta segunda-feira (19).
Na madrugada de 19 de maio daquele ano, por volta das 3h30, parte do Morro do Alto do Cabrito deslizou e atingiu o motel. Segundo reportagem da TV Bahia na época, a ruptura de uma contenção causou o soterramento de 33 dos 50 apartamentos do imóvel. Nove pessoas morreram, entre funcionários e clientes.
O casal que ocupava o quarto 11 foi o primeiro a ser encontrado sem vida. Um bilhete resgatado na recepção indicava que eles haviam solicitado um despertar para as 4h daquela manhã. A ligação da recepcionista, no entanto, aconteceria apenas meia hora após o deslizamento.
O g1 entrou em contato com a Defesa Civil de Salvador (Codesal), a Polícia Civil e o Departamento de Polícia Técnica (DPT), mas nenhum dos órgãos possui mais registros do episódio. O Arquivo Público da Bahia e o Arquivo Público Municipal também informaram não ter documentação sobre o caso.
Parte da memória do ocorrido foi resgatada pelo escritor Marcus Vinícius Rodrigues, que teve acesso a reportagens antigas por meio do Instituto Geográfico da Bahia enquanto escrevia o livro “Motel Mustang”, lançado em 2024. A obra é uma ficção baseada na tragédia real.
Em uma das matérias publicadas pelo jornal A Tarde em 20 de maio de 1989, o delegado responsável pelo caso revelou que o motel operava apesar de estar interditado por sua localização inadequada. Um técnico da então Superintendência de Manutenção e Conservação da Cidade (Sumac), não identificado, afirmou que o imóvel foi construído de forma irregular, em terreno arenoso e instável para suportar uma edificação daquele porte.
Dias após o desastre, a edição de 24 de maio do mesmo jornal noticiou um protesto organizado por familiares dos funcionários mortos. Os corpos ainda não haviam sido localizados. De acordo com o relato de uma das viúvas, o proprietário do motel tinha conhecimento dos riscos de desabamento, mas orientou os trabalhadores a não comentarem o assunto, sob pena de suspensão, caso faltassem ao serviço.

Foto: Reprodução/TV Bahia
Para Marcus Vinícius, à época um adolescente, o que mais repercutiu entre os soteropolitanos não foram as causas do deslizamento em si, mas a identidade das pessoas presentes no motel. “O que chamou mais atenção no desabamento do motel foi justamente essa curiosidade das pessoas em saber quem estava lá”, explicou o autor, que se inspirou nas histórias de amantes e traições para escrever seu livro.
Depois da retirada dos corpos e da conclusão das investigações, o que restou do motel foi abandonado. O terreno onde funcionava a construção foi posteriormente utilizado para a construção do túnel que liga os bairros do Lobato e de Pirajá. O g1 procurou a Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur) para confirmar a informação, mas não obteve resposta até o fechamento da matéria.
Em maio de 1989, Salvador registrou 651 mm de chuva, o segundo maior volume da série histórica iniciada em 1961, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Apenas maio de 1966 teve índice superior, com 703,7 mm. A média do mês é de 302,2 mm.
Matérias da época relatam o impacto devastador das chuvas. Em 20 de maio, o A Tarde informou que o número de mortos passava de 65. Na mesma semana do desabamento do Mustang, a TV Bahia registrou ao menos 33 óbitos.
Segundo o geógrafo Marco Tomasoni, professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (Ufba), desastres como o do Mustang evidenciam o que ele chama de racismo ambiental: “Como essas áreas não são visibilizadas pelo capital, não recebem um planejamento urbano adequado”, pontua.
As obras de contenção de encostas, hoje comuns, só começaram a se difundir nos anos 2000. Sistemas de alerta como sirenes e mensagens em celulares também são recentes. “Com certeza naquela época a cidade não estava preparada para as chuvas”, afirma Tomasoni.
Embora Salvador tenha avançado em medidas preventivas, os deslizamentos e alagamentos continuam sendo um problema. O professor chama atenção para o uso do concreto nas encostas: embora ofereça uma solução imediata, pode aumentar a velocidade da água e causar alagamentos nas áreas abaixo. Além disso, ele alerta para a redução das áreas verdes urbanas. “As áreas verdes transformadas em concreto são amplificações de riscos futuros, porque implicam na drenagem da cidade. É como varrer um problema para debaixo do tapete”, conclui.