Por volta das 8h, o Largo do Pelourinho já estava difícil de transitar. Enquanto alguns faziam questão de ir em direção à igreja, outros se apressavam para conseguir um lugar próximo ao palco montado em frente à Fundação Casa de Jorge Amado, onde a Missa Campal, presidida pelo cônego Lázaro Muniz, teve início às 8h10.
Antes da celebração religiosa, a técnica em enfermagem Maria Selma dos Santos, 57, manteve os olhos fechados enquanto entoava as músicas em homenagem à santa. Ela, que é devota também de Iansã – equivalente à entidade católica no candomblé –, contou que estava relembrando o início da história com Santa Bárbara. “Minha história começou quando eu estava em casa há alguns anos e comecei, inconscientemente, a chamar ‘Odoyá, Odoyá’. As portas do meu quarto começaram a balançar”, conta.
“Eu continuei a dizer ‘Odoyá, minha mãe’. Depois desse episódio, eu comecei a despertar para a fé e eu vi a importância dos orixás para a minha vida. Desde então, Santa Bárbara representa a força e a luz. Ela é poderosa. É como se ela desse subsídios, com a permissão de Deus, para suportar as adversidades da vida”, afirma Maria Selma.
Para o contador Gerson Amorim, 69 anos, Santa Bárbara é a mediadora que possibilitou a abertura de diversas oportunidades ao longo da vida dele. “Sou devoto dela há muitos anos e, ainda na juventude, pedi a ela que me ajudasse a conseguir um emprego. Graças a Deus e a ela eu consegui esse emprego e estou nele até hoje. Ela é luz e foi assim em tantas outras esferas da minha vida”, diz.
A fé de Gerson inspirou a filha Fernanda Amorim, de 19 anos. Ao lado do pai na Festa de Santa Bárbara, ela contou que marca presença em quase todos os anos porque acredita na força da representação da santa. “Além da religiosidade, ela representa a força da mulher, é forte, uma menina que não se prende a nada, é leve como o vento e livre como uma borboleta. Isso me toca muito por conta da nossa história e raízes”, relata.
Início da devoção – Segundo pesquisadores, o culto à Santa Bárbara teria chegado primeiro em Salvador por um casal de portugueses, Francisco Pereira Lago e Andressa Araújo. Eles teriam trazido uma imagem de Santa Bárbara no Século XVII e instituído o morgado de Santa Bárbara na região do Comércio, em 1641. O morgado era uma forma de organização da linhagem familiar, na qual as propriedades eram inalienáveis e passadas para o filho primogênito, após a morte do proprietário.
O morgado de Santa Bárbara era uma edificação composta por prédios, pela capela de Santa Bárbara, construída em honra à mártir, e pelo Mercado de Santa Bárbara, que era um dos principais centros de abastecimento da cidade. Com isso, Santa Bárbara, que é padroeira do Corpo de Bombeiros, dos Mineiros e Artilheiros, passou a ser a protetora dos mercadores. Protetora contra a morte trágica e contra os perigos dos raios e tempestades, a santa pode ter sido invocada também pelos navegadores durante as viagens marítimas.
Segundo a tese de autoria de Vagner José Rocha Santos, doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia, e registros de jornais no Século XIX, a Festa de Santa Bárbara sempre contou com a participação maciça de negros escravizados e a organização dos populares do morgado. Em 1899, um incêndio comprometeu a estrutura da Capela de Santa Bárbara, no Comércio. Milagrosamente, as chamas não afetaram a imagem da santa. Com isso, a capela foi demolida e a imagem transferida para a Capela de São Pedro Gonçalves, conhecida como Igreja do Corpo Santo, que funciona até os dias atuais no Comércio.
A missa à Santa Bárbara passou a ser celebrada na Igreja do Corpo Santo e a festa, “a diversão”, como retratada em alguns jornais, continuou sendo realizada no Mercado de Santa Bárbara até 1912. Em 1913, o mercado situado no Comércio foi totalmente demolido, devido a alguns fatores, entre eles as obras de ampliação do porto. Com o tempo, os comerciantes foram transferidos para o novo Centro Comercial da Baixa dos Sapateiros, levando a sua devoção e dando continuidade à organização da festa anual.
Mas antes dessa transferência para o Centro Comercial da Baixa dos Sapateiros, a Festa de Santa Bárbara viveu um momento de declínio com a demolição da Igreja de Santa Bárbara e do mercado do Comércio, período em que, devido à ausência de citações nos jornais da época, tudo indica que a celebração tenha ficado sem procissão.
Na década de 90, atendendo a um pedido dos próprios comerciantes do Mercado de Santa Bárbara, já em funcionamento na Baixa dos Sapateiros, a imagem de Santa Bárbara foi para a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Largo do Pelourinho, pela história e tradição do templo, para que o santuário pudesse ser mantenedor da imagem e também da festa no Centro Histórico de Salvador.
Fé e resistência – Conta a história que a jovem Bárbara viveu no Século III depois de Cristo na região da Ásia Menor. Seu pai era alto funcionário do imperador e toda a família cultuavam os deuses do império, mas ela se converteu ao cristianismo, se comprometendo a servir a Cristo como único Deus, mesmo que essa decisão custasse a sua própria vida. Por essa decisão, Bárbara foi aprisionada, torturada, teve o seio arrancado, e depois morta pelo seu próprio pai, que a decapitou com uma espada. Após a morte, o céu se fechou e Dióscoro (pai de Bárbara) teria sido atingido por um raio que o matou.
Adeptos do candomblé fazem questão de enfatizar a distinção entre Santa Bárbara e Iansã. Iansã é orixá feminino, seu nome tem origem no iorubá Ìyá Mésàn, o rio de nove braços, em referência ao Rio Níger, morada de Iansã. Algumas pessoas referem-se à Iansã como a mãe dos nove filhos. Ela tem sob seu domínio os ventos, trovões e as tempestades. Também chamada de Oiá, é personificada como uma divindade guerreira e sensual, que atrai paixões, tendo tido muitos amores.
Mesmo que seja uma luta dos adeptos das religiões de matriz africana defender a singularidade e a história dos orixás, o sincretismo religioso ainda hoje se faz presente e está intimamente relacionado à fé dos devotos. Portanto, durante a procissão, é comum que as pessoas relacionem Santa Bárbara à Iansã e façam saudação ao orixá feminino com as expressões Oiá e Epà Hey.
Curiosidades – A Festa de Santa Bárbara é repleta de curiosidades. A cor vermelha, por exemplo, ao mesmo tempo em que representa Iansã, por conta do fogo, representa também o mártir na Igreja Católica.
Outra curiosidade é que Santa Bárbara tem uma igreja dedicada a ela no bairro da Liberdade, que também realiza a Festa de Santa Bárbara, mas trata-se de uma Igreja Católica Independente de Tradição Salomaniana, que não está em comunhão com o Papa.
Veja fotos:
Ver essa foto no Instagram
Leia mais notícias no CORREIO.