Às vezes, mais vale pisar no chão de casa do que no tapete dos outros. Valorizar o que é nosso talvez não seja uma tarefa fácil para todos, mas aqueles que foram capazes de enxergar em suas realidades “simples” um grande potencial econômico comemoram os frutos que já conseguem colher ou que esperam ver frutificar.
A família de Olívia Santos sempre dividiu o tempo entre outras atividades profissionais e o plantio de café em uma área pequena, de quatro hectares, na comunidade de Mato Grosso, em Rio de Contas, na Chapada Diamantina.
Embora fizessem germinar as sementes, jamais tinham experimentado o gosto da bebida feita com os grãos do próprio terreno. Toda a produção ia parar na mão de atravessadores, mas o que ia às xícaras vinha do pó vendido nos supermercados da cidade. Olívia inclusive torcia o nariz para a bebida e só a consumia se houvesse leite misturado.
Como a maioria dos jovens daquela cidade de natureza exuberante e vida calma em meio a construções de traçados antigos, cresceu ouvindo que se desejasse ser “alguém na vida” precisava deixar o seio familiar rumo aos grandes centros urbanos. Assim fez aos 18 anos quando partiu para a cidade de São Paulo (SP).
“Nunca tinha visto o café como uma possibilidade de negócio para mim, nunca enxerguei o café como sendo o futuro, sempre achei que precisava sair, fazer outras coisas”, relata Olívia. Na grande metrópole, não suportou a desigualdade e a vida que era tocada em um ritmo completamente diferente do que estava habituada. Retornou para as origens e passou a trabalhar em uma escola local.
Já mãe de uma garota, um dos seus amigos que tinha uma torre de torrefação, pediu para ela levar os grãos que eram produzidos pela família. A ideia era extrair os melhores sabores e aromas das sementes e quem sabe transformá-las em um café especial.
A resposta foi positiva e ela precisou dar uma saída ao produto. Em pequenos pacotinhos, o café foi sendo repassado para amigos e chegando a lugares cada vez mais distantes. Durante esse processo, o produto caiu na mão de um dono de uma loja de cafés em Lençóis, também na região da Chapada. A qualidade o levou até Olívia.
“Ele e a família ficaram curiosos e vieram me conhecer. Durante essa visita, foi me dito que estava acontecendo um projeto de capacitação em uma cidade próxima, mas apenas para jovens produtores de lá, mas consegui uma brecha. Fui de ousada, na curiosidade, não fazia ideia do que esperar”, relembra.
O projeto em questão é o Fazedores de Café Campo, uma iniciativa da empresa Nescafé, desenvolvida para suprir uma necessidade em relação à sucessão familiar, percebida pela Nestlé na sua cadeia de produtores, seja por desinteresse de seus sucessores ou por falta de conhecimento.
“Naquele momento eu não ainda não tinha a revenda do meu café, era apenas para o turista que ia até minha casa e eu passava um café e vendia um pacotinho ou outro. Eram menos de 50 pacotes por mês”, conta. Com a capacitação, Olívia percebeu que tinha em sua propriedade um verdadeiro ouro. Era agraciada por estar em uma região de clima ameno e altitude elevada, atores que influenciam diretamente no desenvolvimento dos grãos. Rio de Contas está localizada a uma altitude de pouco mais de 1.000 metros e com temperatura média de 21ºC.
Hoje, a marca da Olívia, a Flor do Mato, é revendida em 28 lojas. Também é possível comprar o café produzido pelas redes sociais. Neste ano, a expectativa é de conseguir tirar de 10 a 12 sacas de grãos. Toda a família, inclusive os seus pais, a ajudam no negócio.
“Entendi a importância de ter nossa história colocada para as pessoas. O que era uma coisa da minha família e que eles não conseguiam trabalhar para além de manter a casa, hoje, consigo trabalhar apenas com o café e não estou dando mais conta de atender tudo que está chegando. Estou muito feliz por isso”, comentou.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 90% das empresas no Brasil têm perfil familiar e são responsáveis por gerar 75% dos empregos no país. Além disso, esses negócios contribuem com 65% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional.
Mas ainda conforme o IBGE, a cada 100 empresas familiares abertas, apenas 30% chegam à segunda geração e 5% à terceira. Para Igor Mattos, economista, mestre em gestão empresarial e consultor de governança Familiar, alguns fatores explicam por que tantas empresas familiares enfrentam dificuldades em transições geracionais.
“Temos novas gerações cada vez mais tecnológicas e com ideias inovadoras que acabam não vendo nos negócios da família um lugar para aplicar tudo isso. Muitas dessas empresas familiares, principalmente as menores, podem ser mais vulneráveis às mudanças tecnológicas e de mercado”, explica.
“Outro fator natural que afeta todo e qualquer negócio de família são as relações e os vínculos familiares. Desentendimentos e divergências entre os membros podem afetar a continuidade dos negócios. Por isso, é necessário um plano claro de transição de liderança”, completa o especialista.
A Nestlé, empresa de bebidas e comidas, que tem mais de 1,5 mil fazendas de café em sua cadeia produtiva, estava recendo feedback do seu time ligado à agricultura que os jovens, muitos deles filhos dos donos das propriedades rurais, não queriam ficar no campo para dar continuidade aos negócios da família. Muitos não enxergavam o café com uma fonte de renda e prosperidade e estavam migrando para os centros urbanos.
“A gente entende que o jovem tem um papel extremamente importante na questão de continuar o legado, de continuar crescendo, de continuar o cultivo do café. É importante seguir, e também há algumas questões relacionadas à transição para uma agricultura mais sustentável e regenerativa. O jovem tem menos resistência a experimentar coisas novas, então é um caminho importante para transformar a cafeicultura em uma atividade mais sustentável”, comenta Cecília Seraveli, gerente de ESG de Cafés Nestlé.
Projeto
Diante do problema de sucessão, surgiu, em 2019, o Fazedores de Café. No projeto, jovens tem acesso a aulas com especialistas do setor com temas como conhecimentos técnicos de cultivo, análise multissensorial dos grãos, passando também por técnicas de barismo.
A iniciativa chegou à Chapada, onde a empresa compra grãos de café arábia – foi nessa oportunidade que Olívia virou a chave da sua vida profissional – e, neste mês, em esteve em Eunápolis, na região do sul da Bahia, onde o fornecimento é de grãos conilon.
“A falta de sucessão familiar já estava sendo observada como uma tendência, com impacto potencial na cadeia produtiva, embora ainda não tenhamos medido esse impacto em termos de volume. O retorno dessas atividades tem sido muito positivo.
Os jovens, ao participar, entram em contato com produtores e profissionais relevantes da área”, completa a gerente de ESG de Cafés Nestlé.
Mikaelly Araujo é técnica em agronegócio e faz agronomia na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Ela foi uma das jovens que participou do projeto na cidade de Eunápolis. Seu pai é produtor de maracujá e cacau e, além disso, arrendou parte de suas terras para o plantio de café feito por terceiros em Itabatã, distrito de Mucuri, também no sul da Bahia.
A estudante, que está no sexto período, pensa em cultivar café na propriedade da família. Ela ainda se prepara para sentar com o pai e apresentar suas intenções de também ajudá-lo na lida com a terra. “Meu plano é, talvez antes mesmo de terminar a faculdade, começar a desenvolver uma lavoura de café, pois tenho muito interesse, especialmente no conilon, que é bastante forte na nossa região”, conta Emilly.
A afinidade com a cafeicultura veio durante o curso técnico, quando ela e seus colegas, realizaram visitas em propriedades de café da região, onde puderam ter a chance de conversar com os produtores. “Eu até brinco que, quando íamos para o curso, praticamente todo sábado passávamos por uma lavoura de café que estava à beira da estrada. Por dois anos fizemos o mesmo trajeto e, toda vez, observávamos como aquela lavoura estava, como se fosse nossa. Víamos seu crescimento, o cuidado que recebia, e isso me encantava”, finaliza a jovem.