Enquanto passeia pelo subsolo do antigo Hotel Othon, a fotógrafa Gabriela Daltro avista um rádio preto, bastante empoeirado. É provável que o aparelho esteja ali desde os anos 1970. “Vamos levar lá para cima”, diz. Minutos antes, ela já tinha encontrado cartas endereçadas de Nova York, crachás antigos, telefones, livros e plantas arquitetônicas. “É minha caça aos tesouros”, brinca.
A busca por preciosidades revela, a cada porta aberta nos 12 andares, uma cápsula do tempo. Quase tudo está como em 18 de novembro de 2018, um domingo de sol, quando o hotel fechou as portas.
Em uma sala de administração, a lousa ainda exibe a agenda do dia de um gerente, que na última semana de funcionamento do espaço precisava dar conta de quatro eventos empresariais. Na gaveta do cômodo de madeira, está a cartela destacada de um relaxante muscular.
Não fosse pela desordem esperada para um lugar que passou seis anos abandonado, daria para sentir que um concierge atravessaria o corredor a qualquer momento para voltar à recepção.
Os símbolos dos anos de glória e decadência — sejam o currículo de um velho funcionário ou fotos históricas — são tratados com o mesmo entusiasmo pela equipe que, agora, percorre as dependências antes esquecidas.
Inaugurado em 1975, o Othon é um marco do turismo e da arquitetura moderna da cidade, projetado sobre a encosta da orla de Ondina. Durante as quatro décadas de funcionamento, foi o destino de artistas e autoridades, papel hoje desempenhado pelos hotéis de luxo do centro. O Othon ainda integrava o circuito cultural de Salvador para os nativos, com a boate Hippopotamus, o restaurante Saveiro e shows na área verde, onde já se apresentaram Maria Bethânia e Caetano Veloso.
“Estou doida procurando o ‘livro de ouro’, que todas as pessoas ilustres assinavam”, conta Daltro, “mas sei que ele existe e está em algum lugar”. A jornalista Mai Saraiva incentiva: “A gente vai caçar ele”. O ex-rei da Espanha Juan Carlos, o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o cantor Milton Nascimento terão as assinaturas gravadas nessa caderneta de personalidades.
O jardineiro Valmir José Santos faz as vezes de anfitrião, por estar familiarizado com todas as passagens e saber a chave certa para abrir as centenas de fechaduras. Desde 1998, ele trabalha no Othon. Permaneceu lá inclusive depois do fechamento do espaço, motivado pelo acúmulo de dívidas da Rede de Hotéis Othon.
O trabalho em busca de vestígios históricos do Othon começou em junho, e ainda está em curso. “O mais legal é que as pessoas agora vão poder ver o que a gente encontrou”, comemora Daltro. Será a oportunidade de uma nova despedida.
Em dezembro do ano passado, a construtora Moura Dubeux comprou o terreno de 27 mil m² que inclui o Othon, por R$ 109 milhões — somando impostos, taxas e dívida.
A empresa pernambucana tem avançado sobre a orla de Ondina e já deu outro destino a um vizinho do Othon: o Salvador Praia Hotel, demolido em 2019 para dar lugar a prédios à beira-mar. O antigo Pestana, que está fechado há oito anos, também foi comprado pela Moura, mas o destino dele não está definido.
O prédio do Othon será reformado para abrigar estúdios, apartamentos quarto e sala e dois quartos, salas comerciais, lojas e restaurantes. No terreno, serão construídas duas novas torres. As obras serão iniciadas neste ano, e um imóvel de 572 m² será vendido por mais de R$ 6 milhões.
A caça aos ‘tesouros’ dentro do Othon
Os principais achados desses três meses de trabalho estão em um corredor do antigo lobby do Othon, onde acontecerá a exposição “Memórias do Othon”. A exibição integra o evento CASACOR Bahia, a maior mostra de design, paisagismo e arquitetura das Américas, que ocorre entre os dias 17 de setembro e 6 de novembro no hotel.
A arquiteta e empresária Magali Santana, responsável pelo evento no estado, estava em dúvida sobre o endereço da mostra. Até surgir o Othon no horizonte. “Quando cheguei aqui, enlouqueci”, lembra. Tudo estava como os últimos hóspedes deixaram.
“O tempo parou. A mesa de café da manhã estava posta, com as opções do dia. As camas estavam feitas. Foi demais. Decidi que a mostra tinha que ser aqui. Sei do significado do Othon para a arquitetura e para a memória afetiva das pessoas”, detalha.
Magali, então, convidou Gabriela para visitar o prédio. A ideia de reunir as preciosidades do Othon em uma exposição surgiu depois desse encontro e de algumas reuniões com a Moura Dubeux. “Primeiro, a construtora entregou alguns documentos que encontrou, como fotografias e projetos”, conta Daltro, apontando para fotos da obra de construção hotel, iniciada em 1973, e da ata de inauguração, em fevereiro de 1975, emoldurada na parede.
A primeira fase da missão envolveu Daltro, a curadora, Mai Saraiva, indicada para ser a organizadora da expo, e Gilson Santos, funcionário do antigo Othon. Ele precisou se afastar das atividades por problemas de saúde, e Valmir, que tinha sido demitido em janeiro, assumiu o posto de serviços gerais em agosto. Ao todo, desde 2018, foram demitidos 240 funcionários.
“Tive altos e baixos aqui, mas isso faz com que a gente cresça. Para mim, voltar nessas histórias foi muito emocionante, foi ver um filme, uma novela. Aguentei minha emoção, para não chorar”, conta Valmir, que dessa vez não segurou as lágrimas.
Durante as incursões, o trio recolheu qualquer sinal de história boa que apareceu pela frente, como chaves, cardápios, os icônicos carrinhos de bagagem, regras de conduta dos funcionários e um livro aberto de ocorrências, que revela pérolas da hotelaria. É o caso de um registro feito em janeiro de 2016, sobre um sariguê que invadiu o saguão, e ficou “desfilando por três horas”.
Na última semana, o grupo percorreu o hotel mais uma vez na caça a preciosidades. As escadas levam para salas do administrativo e de serviço, onde uma marcenaria parece estar a pleno vapor. “Esse aí é um colega marceneiro, ele faleceu. Foi ele que criou essas prateleiras”, explica Valmir, ao se deparar com o nome “Minervino” riscado em uma das peças.
Há salas desmontadas, com móveis amontoados, e outras arrumadas como se os funcionários estivessem para chegar. Dezenas de caixas guardam papéis com anotações, como check lists e relatórios. O refeitório dos funcionários parece intocado, com mais de 30 cadeiras de ferro preto e assento laranja ainda postas. É o retrato fiel de uma lanchonete dos anos 1990.
O passeio segue para o segundo andar. Dali até o 12º pavimento, ficavam os 280 quartos de hóspedes. Todos foram adaptados: cada um deles armazena um tipo de móvel ou eletrodoméstico.
Há quartos cheios de camas, outros de colchão, ou de frigobares e luminárias. As roupas de cama não foram encontradas. “É tudo muito: é muito colchão, muito frigobar”, conta Gabriela, ao percorrer o formato em “Y” do pavimento, que democratiza a vista para o mar onde quer que se olhe.
De lá, a busca desce seis lances de escada até o subsolo. “Sabe Disney, que tem túneis subterrâneos? Aqui é tipo isso, é a ‘Disney’ de Salvador. É demais”, brinca Mai.
A caminhada revela uma sala do arquivo morto, com poltrona, luminária e uma cantoneira com um aparelho de fax. O local virou instalação artística e pode ser visto através de um vidro no piso do térreo. O buraco que interliga os pavimentos surgiu no período de estudos de prospecção da Moura Dubeux no prédio, quando a equipe precisou quebrar algumas estruturas.
“Olha que coisa mais linda, aqui que é o restaurante Saveiro”, apresenta Valmir, ao destrancar outra porta, e revelar espreguiçadeiras empilhadas, mesas sobrepostas e cadeiras de madeira. Antes, o acesso do público acontecia por um portão externo ou elevador interno. “Nossa festinha também soltava, daquele jeito que eu sempre gostava de dançar”. No novo projeto residencial, o restaurante será reaberto.
A lendária boate paulista Hippopotamus, que abriu filial no Othon em 1976, funcionava ao lado. A danceteria era inspirada nos clubes noturnos de metrópoles como Nova York e Londres. Apareciam por lá os filhos dos sobrenomes aristocráticos e o metiê cultural — em resumo, os endinheirados ou amigos de quem podia bancar a noitada.
“A boate era maravilhosa”, conta uma habitué, a produtora Nadir Cardoso. Em uma das noites preferidas dela, um ex-namorado, ricaço de Belo Horizonte, mandou fechar a boate. Tudo a partir dali era por conta dele. “O cara trancou a boate, mandou botar champagne. Foi uma festa maravilhosa, todo mundo curtindo, brindando, e Tina Turner tocando”.
Na área que avaranda a antiga boate, a festa também rolava. A área verde do Othon era um endereço de shows. Um dos mais icônicos aconteceu em janeiro de 1997, quando Maria Bethânia e Caetano Veloso convidaram nomes como Carlinhos Brown e Margareth Menezes para uma apresentação que converteu a bilheteria para a Festa da Purificação, em Santo Amaro. Os shows mais recentes naquele jardim ocorreram no último verão. Hoje, há uma churrascaria no espaço.
As imagens de festas que aconteceram no Othon estão entre as fotos da exposição. “A gente ficou muito contente de descobrir tanta coisa, e também de poder mostrar o peso histórico e cultural desse prédio para a Bahia”, diz Mai.
O que vai acontecer com o prédio do Othon?
Para inaugurar o hotel Othon, a rede de hotelaria homônima saiu em viagem por Bermudas, Canadá, Estados Unidos, e México. O convidado para a empreitada era o arquiteto Paulo Casé. A ideia do empresário Othon Lynch Bezerra de Mello, dono do grupo fundado em 1943, era que os forasteiros tomassem notas do que houvesse de mais moderno no setor. Na volta, tudo deveria ser replicado, com um novo tempero, em Salvador.
A empresa tinha alguma experiência no Rio de Janeiro, mas, no início dos anos 1970, expandiu sua atuação, e estava decidida a fundar “o melhor hotel da Bahia”. Na época, o estado vivia o primeiro boom no turismo. A Bahiatursa, órgão estadual de incentivo ao turismo, foi criada, e os principais hotéis foram construídos — como o Meredien (depois Pestana), também projetado por Paulo Casé, e o Salvador Praia Hotel, que foi demolido.
Quando os enviados do Othon voltaram ao Brasil, as ideias estavam na cabeça. Só faltava um terreno na mão. “Após um longo processo de decisão, escolheram um espetacular numa curva da orla de Ondina”, narra o arquiteto, no livro “Paulo Casé 80 anos: vida, obra e pensamento”.
O pernambucano queria reunir as diferentes etapas históricas de Salvador ao modernismo e à gente da cidade. Não fazia sentido criar um hotel, na opinião dele, sem que o hóspede sentisse, mesmo que do quarto, que estava em Salvador.
A construção do Othon Palace começou em dezembro de 1971, realizada pela Odebrecht. “Mas como traduzir essa tradição para a verticalidade de um hotel? Assim, pensei em conjugar elementos variados, como os arcos, os azulejos, as janelas de madeira entrelaçadas como rendas. Se alcancei o objetivo, não sei. Mas é certo que esse edifício se distingue em seu conjunto”, detalha Casé, no livro.
O piso de cerâmica assinado pelo artista plástico Francisco Brennand em 1974, foi um plus. A obra em forma de chão está conservada e permanecerá ali.
“Essa memória do Othon é muito importante, é um símbolo do moderno na cidade”, diz o arquiteto Nivaldo Andrade, professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba). “Em Salvador, a prática é demolir, não reaproveitar”.
Nivaldo explica que três aspectos são considerados na decisão de demolir ou não um bem: o patrimonial (quando um imóvel é tombado, a demolição é proibida); o estrutural (se há riscos de segurança); o econômico (o que em geral se sobrepõe aos outros dois fatores de decisão).
Na Bahia, no entanto, a preservação é mais comum quando o edifício é tombado, como a antiga sede do jornal A Tarde, transformada no hotel Fasano, e o convento do Carmo, que também virou hotel. A Casa di Vina é uma das exceções. A antiga residência de Vinícius de Moraes se tornou um hotel boutique, com restaurante.
No Rio de Janeiro, há um exemplo semelhante ao do Othon. O antigo Hotel Glória será transformado em um residencial de luxo, mas com a estrutura estética original. É no Rio, inclusive, que ficam os dois únicos hotéis mantidos pela Rede Othon.
“Tem um outro aspecto que é a questão ambiental. Reutilizar é sempre melhor. Porque demolir sempre significa gerar mais detritos. Os três ‘Rs’ da educação ambiental [reduzir, reutilizar e reciclar] também se aplicam na construção civil. Numa construção, você vai mandar vir concreto, aço, vidro, há um gasto enorme de combustível”, explica Nivaldo.
A Moura Dubeux afirmou avaliar o destino dos móveis do hotel, e que incluirá a galeria de objetos histórico do Othon no projeto.
Ao encontrar um deles, um aparelho de fax deixado pelo caminho, Valmir se senta na poltrona do lado. Puxa o gancho, e começa uma brincadeira nostálgica: “Meu patrão”, diz ele, simulando um diálogo com o falecido dono do Othon, “tô aqui, cuidado do patrimônio”. Ele finge ouvir o interlocutor, antes de se despedir. “Tá lindo do mesmo jeito”.
Serviço:
Exposição “Memórias do Othon”
Onde: Hotel Othon, Avenida Oceânica, Ondina.
Quando: Entre os dias 17 de setembro e 6 de novembro.
Quanto: R$ 90 (inteira) / R$ 45 (meia-entrada para estudantes, professores, PCD e idosos).