Às segundas, pescadores da Colônia do Rio Vermelho têm o hábito de montar uma fogueira, sobre a qual braseiam frutos do mar. Certo dia, o chef de um restaurante espanhol do bairro visitou um desses encontros e se admirou com o cardápio: pinaúnas, aqueles ouriços pretos e espinhosos que apresentam o inferno a quem pisa neles.
Só que ninguém ali sofria. Os pescadores pingavam limão sobre as ovas laranjas, uma atrás da outra, e engoliam com cachaça. Naquele dia mesmo o estrangeiro encomendou pinaúnas para vender no restaurante dele.
O interesse pelas pinaúnas, desde então, só cresceu. Hoje, elas são parte do menu de, ao menos, cinco restaurantes da chamada “alta gastronomia” de Salvador. Não é lá uma novidade para famílias mais pobres que vivem às margens do mar, especialmente entre Salvador e o Recôncavo baiano.
A incorporação ao mercado do luxo, no entanto, gera um novo ciclo para esse ouriço. Fora do Brasil, em especial na culinária japonesa e também mediterrânea, ela já é uma iguaria cara. Um pote de 400 gramas de suas ovas é vendido em mercearias por quase R$600.
“Para mim, sempre foi comum comer, estranhei foi ter alguém pedindo”, diz Antônio Pereira, de 64 anos, o pescador de pele preta e cabelo rastafári grisalho que buscou as pinaúnas para o espanhol e que viria a abastecer três restaurantes da vizinhança.
Pelo menos duas vezes por semana, Antônio, que comia pinaúna desde a infância com os 10 irmãos, se distancia da Praia do Rio Vermelho em busca dos ouriços redondos, com diâmetro de até 15 centímetros.
Ele mergulha a até oito metros para evitar pegar as pinaúnas que ficam na beira do mar e ficam mais sujas, pela poluição das águas. No trabalho, ele não usa nem roupa de mergulho — que custa até R$ 1,8 mil —, nem equipamentos de respiração.
Para evitar a violência dos espinhos, uma luta perdida como se vê pelos dedos manchados de preto e que já infeccionaram várias vezes, o pescador tira as pinaúnas das pedras por um arco de metal.
Depois de uma hora no mar, lá vem Antônio com um saco com 80 bolinhas pretas, que é vendido por R$ 100.
A maioria delas é mais gordinha, cheia de ovas, como desejam os compradores. Embora hajam pinaúnas no mar o ano inteiro, o período entre janeiro e abril é o melhor para encontrá-las nesse estado de suculência e fertilidade. É quando há mais sargaço no mar, algas que alimentam espécies marinhas, e acontece o pico reprodutivo da pinaúna.
Como a pinaúna ganhou o mercado de luxo
O chef que visitou a colônia do Rio Vermelho, naquela farra dos pescadores há quatro anos, era José Morchon. O espanhol fundou em 2011 o La Taperia, especializado em tapas, e gosta de estar atento aos movimentos do bairro.
“O gringo se atreve a comer?”, brincavam os pescadores sem saber que, desde criança, José comia pinaúnas partidas ao meio, como se faz com as ostras na Bahia. A única diferença era o nome: na Bahia, esse ouriço foi nomeado no tupi-guarani com o significado de “farpa preta”.
Aos poucos, a pinaúna ganhou mais espaço no cardápio d’A Taperia. Virou o recheio de um croquete, o complemento de um palmito assado e o tempero do molho de um peixe. Até já foi em uma paella.
O principal cuidado é com a conservação. Fora do congelador, as pinaúnas duram dois dias. “É um produto fantástico, ela traz um potencial de sabores até para outros pratos”, justifica José sobre o sucesso mais recente do ouriço do mar.
O croquete é um dos pratos mais servidos da casa. “Elas vêm sempre gordinhas, gosto assim. Não adianta abrir a pinaúna pequena e ter pouca carne”, recomenda o chef.
Assadas, as ovas da pinaúna se misturam, endurecem e são tiradas de colher da casca. Os espinhos, por sua vez, caem. Lembra o gosto de um aratu. Cruas, elas remetem ao caviar, as ovas extraídas do peixe esturjão.
Em qualquer versão, a pinaúna salga o hálito, como quando se engole, sem querer, água do mar e o sal demora na boca. Há, contudo, uma doçura no fundo que equilibra tudo.
O sucesso do ouriço
O principal comprador de pinaúna do Rio Vermelho é o restaurante Manga. Os chefs e donos, Dante e Katrin Bassi, encomendam os ouriços duas vezes por semana a Antônio.
Os chefs chegaram a sugerir pinaúnas no cardápio. Não deu muito certo. Como havia 200 convidados no evento, os ouriços crus poderiam demorar na mesa e perder o frescor. Aí, venceram os populares camarão e o robalo.
Tem cliente do Manga que também estranha a possibilidade de comer pinaúna. Acha que é venenosa ou faz mal por puro desconhecimento, e pede uma substituição aos chefs. A comida faz parte do menu degustação do restaurante, composto por 11 etapas que custam R$ 350 sem vinho e R$ 590 com a bebida.
Até estarem no ponto de ser temperadas, acontece um processo de limpeza que começa com o corte do topo dos ouriços. Depois, abertos, eles são mergulhados em um balde de água com gelo e sal.
Entre os frutos do mar preparados lá, são os mais trabalhosos: um saco de 100 pinaúnas demanda até quatro horas de asseio. “Aproveito para pensar na vida”, brinca Dante.
A solução salina limpa as impurezas internas e solidifica as ovas em formato de estrela. Antes disso, elas têm uma aparência meio esparramada.
Na composição dos Bassi, os espinhos, mecanismo de defesa das pinaúnas, ficam. Eles denotam o frescor do alimento que, fora do congelador, apodrece em dois dias. Dentro do prato, fique tranquilo, não há qualquer vespa.
Desde a inauguração, em 2018, o Manga serviu quatro pratos com pinaúna. O da vez é a versão crua com tapioca, tomate e lima-da-pérsia. “É pouco valorizada a riqueza de produtos que a gente tem aqui. É bom que cada vez mais restaurantes usem a pinaúna e mostrem que é uma opção”, defende Dante.
Foi em 2016, quando voltou a morar em Salvador, que ele pensou em servir pinaúna no novo restaurante. Só não conhecia os fornecedores. Até encontrar Antônio. E um grupo da Baía de Todos-os-Santos.
A Aliança Kirimurê reúne 200 famílias que vivem do mar, entre 20 comunidades pesqueiras. No ano passado, ao perceberem o interesse de restaurantes, três comunidades da Ilha de Itaparica notaram que as pinaúnas – parte da dieta local – poderiam virar negócio.
Em manhãs de maré cheia, depois de luas cheia ou nova, dez mulheres vão para o mar pegar as pinaúnas. Um quilo das ovas é vendido por R$ 200, preço abaixo do mercado.
Os principais clientes são pessoas físicas, mas os restaurantes Origem, Vini Figueira e Boia logo viraram clientes. Depois, por mudanças no menu, eles interromperam o fornecimento. O Manga tem centralizado os pedidos para Antônio, pela proximidade.
Tem restaurante, no entanto, que ainda prefere a importação. O tradicional restaurante japonês Soho compra as pinaúnas de Florianópolis, em Santa Catarina. Em temperaturas frias, elas podem se desenvolver mais. É resultado da combinação de oferta de nutrientes com o menor estresse provocado pela temperatura da água.
Os ouriços viajam de avião, conservados no gelo, até aqui. “Já pensamos em fornecedores locais, mas elas precisariam ter um tamanho melhor para a culinária japonesa”, justifica o chef Marcelo Fugita.
Onde posso comprar a pinaúna
Os ouriços do mar, que são da mesma classe das estrelas-do-mar, são abundantes no mundo inteiro, menos na Antártica, e ganham características específicas a depender de onde habitam. Na costa brasileira, no momento, não correm risco de desaparecer.
“Essa relação com a alta gastronomia precisa ser olhada com cuidado. A pressão não existe ainda”, atenta José Amorim Reis, doutor em Ecologia e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Em restaurantes mais simples, no entanto, a pinaúna não aparece facilmente no menu. Ainda que, muitas vezes, os proprietários cozinhem para si ou a pedido de clientes.
A primeira vez que o advogado Felipe Almeida, de 39 anos, comeu esse ouriço, foi em um sushi bar de Los Angeles, em 2017. Um ano depois, ele soube de um local em Arembepe, no Litoral Norte, que servia a pinaúna. Foi lá conferir. Felipe se fartou, naquela tarde, de caldo, moqueca e bolinho de pinaúna. Só que ele jamais consome esse ouriço sem saber da procedência. “Tem de ser fresco”, aconselha.
Arembepe, para onde ele viajou, é o point da venda de pinaúnas por um preço camarada. Na antiga vila hippie, elas inspiram até um festival que acontece aos fevereiros, desde 2011, por ideia de nativos.
O autônomo Ramon Souza, de 54 anos, ouviu de uma amiga a sugestão de criar o evento. E por quê não? As pinaúnas eram parte da cultura, mas o estigma sobre ela resistia. Uma homenagem poderia ajudar.
No festejo, os nativos servem a pinaúna como polpa de um caldo, recheios de pastel e empada e em moqueca. Para evitar a sobrepesca do ouriço, os organizadores limitam o público a 500 pessoas. “Só que tem gente que conhece e compra o resto do ano”, conta Ramon.
A principal barreira para conhecer a pinaúna por dentro, segundo ele, é superar a aparência dela. “Vencendo os espinhos e mentiras que contam, é deliciosa”, filosofa ele sobre as lições que até um prato de comida podem dar.
Onde comprar?
– Antônio Pereira: Pescador do Rio Vermelho e aceita encomendas pelo (71) 99159-2636 ou presencialmente na Colônia de Pescadores do bairro
– Colônia de Itapuã: Aceita encomendas e fica na Rua Aristides Milton. Os contatos são (71) 98310- 3823 ou (71) 99702- 5736
– Colônia de pescadores da sua preferência: As pinaúnas são abundantes no litoral baiano. Sendo assim, converse com um pescador
Aliança Kirimurê: Atendem pelo instagram @alianca_kirimure
Como pinaúnas nascem e se alimentam?
1) As pinaúnas nascem de um encontro indireto: os gametas femininos e masculinos da espécie são lançados no mar e se encontram.
2) Antes de ganharem a aparência espinhosa, parecem microcrustáceos, que se precipitam no fundo do mar, em busca de estruturas sólidas onde crescem, conseguem alimento ou viram a comida de lagostas, peixes e polvos.
3) Como não têm boca, o ouriço marinho, que se alimenta de restos orgânicos (como algas) e de outros animais no fundo do mar, possui um órgão de mastigação chamado “lanterna de Aristóteles” que raspa as laterais das rochas e leva os alimentos para o trato digestivo. Esse órgão fica aparente em uma bolinha aberta embaixo da pinaúna.