Duas primas da cantora Gal Costa acionaram a Justiça para provar que a artista foi pressionada a anular um testamento, inédito e acessado com exclusividade pelo CORREIO, que destina todo seu patrimônio a uma fundação cultural de preservação da memória da artista.
O documento de 27 de maio de 1997 foi invalidado pela própria Gal Costa em 2019 – os parentes alegam que ela sofreu ‘coação moral’ para registrar em um Tabelionato de São Paulo a anulação.
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O patrimônio de Gal é atualmente disputado pelo filho, Gabriel da Costa Penna Burgos, e pela empresária, Wilma Teodoro Petrillo. Ela argumenta que viveu em união estável com Gal, o que daria a Wilma o direito aos bens.
A briga pela herança da artista, avaliada em R$ 20 milhões, ganhou mais um capítulo no dia 14 de março deste ano, quando Verônica Pedreira de Freitas Silva e Priscila Silva de Magalhães, primas da artista, protocolaram na Justiça um processo na intenção de invalidar a anulação do testamento, que possui versões digitalizada e a próprio punho.
O documento de anulação, apesar de ter a assinatura de Gal, segundo elas, não conteria a sua real vontade. A defesa das duas argumenta que houve manipulação por parte de Wilma para que o testamento fosse anulado.
No testamento, que foi feito antes da adoção de Gabriel e acessado pelo CORREIO por intermédio das primas, Gal destina todo o seu patrimônio à criação da Fundação Gal Costa de Incentivo à Música e Cultura. As responsáveis pelo feito, designadas pela cantora, seriam as primas Verônica e Priscila (que movem o processo), além das também primas Marina Penna Pedreira de Freitas (já falecida), Maria Lúcia Pedreira de Freitas e Maria Laura Pedreira de Freitas Silva. Elas seriam as responsáveis pela gestão do patrimônio, que deveria ter como finalidade, de acordo com o testamento, a criação e gestão de uma fundação sem fins lucrativos.
A instituição teria como principal objetivo a formação de músicos e outros artistas, assim como promover festivais e concursos. A ideia seria atender à população mais carente, doando bolsas de estudo, instrumentos e proporcionando cursos. Só cobraria mensalidade ou anuidade para quem tivesse condições financeiras. Uma exigência feita por Gal era que a Fundação fosse criada na Bahia. Como quinta testemunha do registro do documento, está Wilma, cuja assinatura consta no testamento em questão.
Envelope lacrado
O testamento, feito em 1997, foi encontrado após a morte de Gal nos pertences da família. Verônica e Priscila dizem não terem tido conhecimento prévio do conteúdo, que estava em um envelope lacrado com uma etiqueta que continha o nome “Gal Costa”. Diante da descoberta, as duas contam que resolveram “fazer valer o desejo da prima”. Verônica é mãe de Priscila e chegou a morar no Rio de Janeiro com Gal. Ela diz ter sido designada pela cantora como guardiã do acervo de figurinos, emprestados, a pedido de Gal, à atriz Sophie Charlotte para o filme “Meu nome é Gal”, lançado em 2023.
Gal tinha apenas um irmão: Guto Burgos (por parte de pai, chegou a ser seu empresário antes de Wilma). A mãe da artista, Mariah, tinha uma irmã: Maria Elvira, mãe das primas de primeiro grau Marina e Maria Lúcia, citadas no testamento, sendo a primeira já falecida. A segunda, por sua vez, é mãe de Maria Laura e Verônica, também citadas no testamento.
Ao encontrarem o documento no envelope lacrado, Verônica e Priscila procuraram os advogados Sergio Nunes e Diego Ribeiro, do escritório Kruschewsky & Nunes Ribeiro, na capital baiana, que, no primeiro momento, fizeram uma busca em todos os cartórios do país e encontraram os registros do testamento de 1997 e, para a surpresa das primas, também do seu ato de revogação de 2019.
A defesa das duas explica que, para alcançar a anulação da revogação do testamento, vai basear-se em testemunhas e “nos elementos de provas existentes no inventário e no contexto de denúncias divulgadas pelo filho Gabriel que sinalizavam a coação irresistível sofrida pela cantora”.
O advogado Tauan Almeida, especialista em Direito Sucessório consultado pelo CORREIO, explica o cenário: “A prova de que o testamento foi revogado mediante coação pode resultar na sua anulação. A coação ocorre quando a pessoa que deixa o testamento é obrigada a assinar a revogação estando sob ameaça, seja física, moral, emocional ou psicológica. Neste caso, será necessário provar que, ao assinar a revogação, Gal agiu motivada por uma coação moral tão irresistível que naquele momento deixou de lado sua real vontade e fez o que era, na verdade, a vontade de outra pessoa.”
Para a ação movida pelas primas, os advogados das duas argumentam que há “fortes elementos e indícios de que Gal Costa sofreu coação moral irresistível, contra si, contra sua família e contra seu patrimônio” e ainda que “Gal se encontrava, em 2019, em estado de vulnerabilidade psicológica, econômica e social”.
“A comprovação da ocorrência de coação faz com que o ato jurídico seja nulo ou possa ser anulado. Portanto, se for provado que Gal foi coagida a assinar o ato de revogação de testamento, será como se essa revogação nunca tivesse existido, e aí sim o testamento feito em 1997 irá prevalecer”, acrescenta Tauan Almeida, advogado consultado pelo CORREIO.
É na tese de que Gal tenha sido coagida por Wilma que se baseia a defesa das primas. As duas ressaltam que não seriam beneficiadas pessoalmente com a herança, destinada à Fundação que visaria preservar a memória e obra da artista. “Não estamos interessadas em nada além do que fazer valer a vontade de Gal. Queremos dar vida ao que ela deixou escrito porque seu desejo e sua obra não podem ser silenciados”, diz Priscila.
Mesmo que a ação tenha sucesso e o testamento em questão seja revalidado, como Gal deixou um filho, os recursos não poderiam ser destinados 100% para a Fundação. A lei brasileira prevê que, no caso da existência de herdeiros, apenas 50% podem ser partilhados de acordo com a vontade do autor do testamento. Dessa forma, Gabriel teria direito aos demais 50%. Caso Wilma consiga provar a relação conjugal que teve com Gal, dividirá com Gabriel os bens adquirido após o início da união.
Wilma e Gabriel
Gal e Wilma se conheceram em um voo de Nova York para o Brasil, segundo uma reportagem de Thallys Braga para a revista Piauí, na primeira metade da década de 90. No avião, Gal teria oferecido estadia para Wilma, que desembarcaria em São Paulo sem ter onde ficar. A partir de então, teriam engatado um namoro, de acordo com a reportagem, publicada em julho de 2023. O material ainda traz a público, pela primeira vez, acusações de golpes financeiros, assédio moral e ameaças contra Wilma, levantadas por ex-funcionários e amigos de Gal.
A artista sempre afirmou, em entrevistas, o desejo de ser mãe. Como não podia engravidar, por problemas em uma das trompas e uma menopausa precoce, ela decidiu adotar. Em 2007, concluiu o processo de adoção do filho Gabriel, sem a participação de Wilma. O jovem, agora com 18 anos, briga na Justiça contestando o pedido de reconhecimento da união estável, alegando que Wilma seria apenas empresária da artista, e pede a exumação do corpo da cantora para investigar as causas da morte.
Verônica e Priscila dizem desejar a participação de Gabriel na criação e gestão da Fundação, caso assim seja do seu interesse. O advogado Sérgio Nunes menciona matérias jornalísticas que citam a existência de um testamento em favor de Gabriel e pondera que o documento não consta nos registros de dados do Colégio Notarial do Brasil (não seria um testamento público), mas que, caso exista (como testamento privado) e seja apresentado, suas clientes se comprometem a desistir da ação judicial que pede a anulação da revogação do documento de 1997 que prevê a Fundação.
Imbróglio
A ação anulatória ajuizada por Verônica e Priscila deve atravancar ainda mais o andamento do inventário. No último dia 15, a juíza Luciana Novakoski Ferreira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou que a ação deve tramitar em conjunto com o inventário.
Até o momento, Wilma é a inventariante (administradora temporária do patrimônio até que o inventário seja concluído), já que Gabriel tinha 17 anos quando a mãe morreu. Nos registros do Tribunal de Justiça de São Paulo, no entanto, constou no dia 25 de março uma ação que pedia a remoção da inventariante.
A defesa de Gabriel, procurada pela reportagem, preferiu não comentar sobre o pedido de remoção. A advogada, Luci Vieira Nunes, ainda disse não ter conhecimento sobre a ação movida pelas primas de Gal e nem sobre um testamento da artista em favor do filho. Alegou, no entanto, que a cantora teria revogado o testamento de 1997, feito antes da adoção, para deixar o patrimônio para Gabriel. Luci é uma das testemunhas nomeadas por Gal que assinam o testamento.
Wilma Petrillo foi procurada e os questionamentos do CORREIO foram respondidos por sua advogada, Vanessa Bispo. Sobre o documento de 1997 que prevê a criação da Fundação, ela disse que “juridicamente, esse testamento não existe”. Sobre as acusações feitas a Wilma, disse que “a coação é algo que não basta ser alegado, tem que ser provado”. Sobre as questões na Justiça com Gabriel, a advogada alegou que a união estável entre Gal e Wilma “já foi reconhecida nos autos do processo do inventário” e disse que não comentaria sobre o pedido de exumação do corpo da cantora, já que Wilma não é citada neste processo. Sobre o pedido de remoção da inventariante, disse que foi feito por Gabriel, mas que não foi acatado na Justiça e que “não há motivo nenhum para Wilma ser removida”. Por fim, acrescentou que sua cliente está “bastante abalada com tudo isso”.
A reportagem também procurou Guto Burgos (irmão e ex-empresário de Gal), que respondeu que não se manifestaria sobre o assunto.