Tempo de reencontros e de celebrações, o Natal traz um misto de sentimentos para muitos, inclusive para aqueles que estão longe de casa. A saudade ganha forma e, por mais que possa ser apaziguada com músicas ou filmes que resgatem histórias e momentos, por exemplo, não tem como negar que, muitas vezes, é o cheiro e sabor de um bolo simples da avó que nos remete às risadas compartilhadas na mesa da sala e que carrega a essência de pertencimento que pode faltar em datas assim.
Estar longe de casa e da família no Natal, às vezes a um ou até dois oceanos de distância, é sentir o coração dividido. E, nessas horas, valorizar as memórias e alimentar, literalmente, a esperança de um reencontro próximo é dar à saudade o lugar da alegria de um retorno.
“A memória afetiva que traz a comida tem um poder incrível de reativar lembranças e mergulhar nelas”, acredita Thomas Duprat, sócio do Jabú Restô & Bar (@jabu_salvador), no Rio Vermelho. “Cozinhar é uma forma de meditar, explorar lembranças e se reconectar com muitas partes de si”, defende o francês, que comanda o espaço gastronômico ao lado do conterrâneo Aurélien Roche.
Residente no Brasil há cerca de 7 anos, o mixologista e sommelier, muitas vezes, mata a saudade de casa no próprio menu do Jabú. “O nosso bœuf bourguignon me lembra a comida da escola quando era guri. No Cöa (restaurante também no Rio Vermelho, do qual é um dos sócios), a mousse de chocolate do cardápio tem a mesma receita da mousse que minha vó paterna preparava pra nós… É uma lembrança muito linda”, relembra o parisiense.
“Há poucos dias, um cliente pediu um Negroni (coquetel italiano clássico, à base de gin, vermute tinto e Campari, servido apenas com gelo e uma rodela de laranja). Eu gosto de manter a receita tradicional, sem artifícios. No final, o cliente veio me agradecer, muito emocionado, por ter feito um Negroni do jeito que o pai dele, que tinha falecido há pouco tempo, fazia em casa”, contou.
Essa história reforça que, quase sempre, a saudade é abrandada com as coisas simples. “O que mais sinto falta é simplesmente de uma travessa de queijos”, diz o francês Timothée Roche, filmaker, fotógrafo e cliente assíduo do Jabú, que diz acreditar que a comida pode curar a saudade, sim, “desde que seja boa!”. Em Salvador, através do trabalho dos conterrâneos, ele diz redescobrir sabores que não provava desde que saiu da França. “É tão reconfortante!”, destaca.
Para matar a saudade de casa, no Sul da França, Tim diz preparar, sempre que pode, um bom gratin Dauphinois, um gratinado francês de batatas cruas fatiadas, assadas com creme, da região de Dauphiné, no sudeste francês, de onde guarda muitas memórias. “A mais forte é o ensopado de javali que o meu vizinho, muito idoso, preparou com nhoque provençal”, resgata.
A pouco menos de 400 km de distância do sul da França, a ilha italiana da Sardenha foi onde o chef Marco Caria nasceu. À frente do Isola Cucina Italiana (@isolacucinaitaliana), no mesmo bairro boêmio do Rio Vermelho, ele é conhecido pela qualidade das massas dos seus pães e dos seus gelatos, entre eles o de pistache, muito valorizado em sua terra natal.
“Curar a saudade, não, mas, com certeza, a comida ameniza a distancia e é uma forma de manter uma conexão“, diz ele, que é remetido à infância e a momentos especiais através das entradas servidas em seu restaurante, como a salada de polvo, os embutidos e os queijos artesanais. “Na minha memória de infância, a mesa cheia de entradas sempre foi minha parte favorita da refeição”, relembra.
“O objetivo do Isola sempre foi recriar um ambiente e uma atmosfera de casa. É um lugar para desacelerar, curtir a comida, mas também aproveitar a espera para se conectar com as pessoas ao seu redor”, explica o chef, que traz como um dos carros-chefes da casa o Malloreddus a Campidanese, típica massa artesanal com molho de linguiça e tomate, pecorino e perfume de açafrão, uma receita que aprendeu com a família e que faz questão de manter “viva”. “Nele, tem o açafrão, a linguiça e o pecorino, todos ingredientes típicos da minha terra, uma massa que remete a dias de festa e de juntar a família”, conta.
Nem todo ingrediente típico, inclusive, é facilmente encontrado em solo brasileiro, o que pode provocar um pouco mais, vez ou outra, a saudade. “Dois pratos que sinto muita falta são fettuccine com funghi porcini fresco, porque aqui se encontra desidratado, e fettuccine com tartufo (as raras trufas)”, elenca Marco Tardio, cliente do Isola que mora no Brasil há 23 anos.
O italiano, diretor de uma empresa de turismo, no entanto, não se prende a isso e encontra conforto também em sabores tradicionais daqui, como o cozido, que não apagam, no entanto, as fortes memórias de pratos como o tradicional “patate, Riso e cozze”, um dos mais amados da Puglia, à base de arroz, batatas e mexilhões, e ingredientes como o “cime di rapa”, também típico da região italiana, conhecido como “brócolis selvagem”.
Muito além dos sabores em si, a comida nunca é apenas comida, e resgata momentos e pessoas, invariavelmente. “Uma das minhas memórias mais fortes relacionadas à comida e à minha terra natal é comer refeições frescas e caseiras com minha família. O aroma dos temperos na cozinha, o sabor dos pratos feitos na hora e a alegria de compartilhar essas refeições são inesquecíveis. Seja um café da manhã simples ou um banquete festivo, o frescor e o amor na comida sempre a tornava especial. São esses momentos que mais sinto falta quando penso em casa”, diz Sandeep Tiwari, professor de Microbiologia da UFBA.
De sua terra natal, a Índia, ele diz sentir mais falta dos lanches típicos, como a samosa, os chaats e namkeens, mas confessa encontrar certo conforto em alguns pratos da culinária de Salvador, como acarajé e moqueca.
Quando a saudade de casa aperta, no entanto, os pratos favoritos são resgatados. “Sempre que sinto saudades de casa ou é uma ocasião especial, gosto de cozinhar alguns dos meus pratos favoritos. O sabor e o cheiro familiares trazem de volta memórias felizes e me fazem sentir mais perto da minha família e da cultura”, diz o professor, cliente do Vishnu Culinária Indiana (@vishnuculinariaindiana), coincidentemente também no Rio Vermelho.
O restaurante é comandado pelo simpático Vishnu Viamshi, que faz questão de manter no cardápio receitas típicas da família. “Todas as receitas que eu faço, eu aprendi com minha mãe”, conta o chef, defensor do poder da comida na “cura” da saudade.
Ele vai além e compara o Ayurveda, tradicional sistema de medicina da Índia, surgido há mais de 4 mil anos, com uma boa comida. “O Ayurveda é baseado na coisas naturais e temos muitas receitas e pratos que podem curar nossa saúde”, destaca.
Seja no toque artesanal de uma massa caseira, no aroma de especiarias ou no sabor de um prato que atravessa gerações e continentes, a comida carrega um poder que vai muito além do ato básico de se alimentar. Ela abre um portal para memórias, conecta famílias e histórias, e é um belo e apertado abraço. É através desses sabores que se mantem vivas as tradições e cultivada a esperança dos reencontros.