‘A cozinha precisa de nossas histórias’: chefs negros falam sobre suas trajetórias na Gastronomia

‘A cozinha precisa de nossas histórias’: chefs negros falam sobre suas trajetórias na Gastronomia

Redação Alô Alô Bahia

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José Mion/Alô Alô Bahia

Divulgação

Publicado em 20/11/2024 às 08:01 / Leia em 9 minutos

A gastronomia brasileira é rica, diversa e um reflexo das influências culturais que moldaram nossa história. Indiscutível é a força da cultura negra na construção dessa identidade gastronômica nacional e, ainda assim, quando pensamos nos chefs mais famosos do Brasil, os nomes que surgem quase sempre são de profissionais brancos. Alguns, inclusive, nem brasileiros são. Enquanto isso, os chefs negros veem a ausência de representatividade nos prêmios, nas capas de revistas e nas cozinhas estreladas como prova de uma desigualdade estrutural que precisa ser debatida, não apenas neste Dia da Consciência Negra, mas em toda oportunidade.

Até histórias que resistem, como a de Benê Ricardo, são pouco conhecidas. Em 1981, a moça negra de Minas Gerais rompeu barreiras ao ser reconhecida como a primeira mulher brasileira a receber o diploma de chef de cozinha no país. Formada em 1954 pelo Senac São Paulo, na primeira turma de cozinheiros profissionais da instituição, ela abriu caminhos em um universo até então dominado por homens brancos e fez questão de valorizar a culinária brasileira e inspirar gerações de profissionais negros a acreditarem no seu potencial e reivindicarem seu espaço na gastronomia.

Benê Ricardo foi primeira mulher a receber o diploma de chef de cozinha no Brasil | Foto: Reprodução/Google

Sem dúvida, foram figuras como ela que permitiram que, hoje, chefs como Ícaro Rosa, carioca radicado na Bahia, tenha como um dos seus sonhos formar profissionais no seu restaurante Jiló, há 9 anos na Bahia, dois deles em Salvador. “Eu tenho uma lembrança de uns 7 anos atrás, quando participei de um festival de gastronomia em São Paulo, da Prazeres da Mesa. Recebi uma mensagem no Instagram de uma pessoa dizendo ‘Ícaro, eu queria te agradecer, porque a gente sempre vê pessoas como a gente em cargos de (limpeza de) louça, auxiliar de cozinha… e ver você dando uma aula, isso me traz uma esperança’. Isso me bateu de uma forma! Isso mudou muito o meu olhar sobre a minha posição na gastronomia. Comecei a entender a minha responsabilidade, onde eu estava. E, de fato, a gastronomia, principalmente a alta gastronomia, é um lugar que a gente não se encontra“, revela o chef, que moldou ali um objetivo para sua vida.

Ícaro Rosa vê o ato de cozinhar como um ato político | Foto: Jota Jr.

“Eu quero formar mais pessoas. Hoje, eu tenho duas sub chefs mulheres pretas. Isso é uma coisa que já me deixa muito feliz. E depois, quem sabe, daqui a 3, 4, 5 anos, veremos mais restaurantes com pessoas pretas em cargo de liderança, isso é mais importante”, completa o chef que vê, hoje, o ato de cozinhar como um ato político, principalmente pelos desafios enfrentados no caminho. “Ter restaurante já é um desafio. Fazer alta gastronomia, sendo um chef preto, dono de restaurante, triplica o desafio. Desde que me formei em gastronomia, há quase 20 anos atrás, queria muito desvincular essa coisa de que as pessoas acham que, se você é cozinheiro preto, você tem que fazer um certo tipo de comida“, contextualiza o chef sobre o imaginário popular que as pessoas têm do cozinheiro preto, desligado da ideia da comida “elaborada” dos grandes restaurantes mundiais.

“Na hora de um chef negro fazer alta gastronomia, a sociedade não aceita muito. Acham que chef negro tem que fazer comida de casa, que nós temos que fazer só feijoada, aquelas comidas pesadas. Mas, não, eu consegui provar que nós conseguimos fazer de tudo. Então, acho que um pouco do preconceito vem daí: chef negro só sabe fazer comida que não é elaborada”, faz coro o chef Vini Figueira, atualmente há frente de três operações em Salvador – Vini Figueira Gastronomia, Vini Mar e Genaro -, além de um buffet com expertise para cozinhar para até 10 mil pessoas, como aconteceu recentemente em evento com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Vini Figueira | Foto: Elias Dantas/Alô Alô Bahia

Esse estigma dificulta mais ainda um caminho que já não tem nada de fácil. “O caminho do chef preto sempre será mais difícil”, reflete Alan Cerqueira, à frente da rede de restaurantes temáticos Winner Sports & Gourmet e, em breve, à frente de um projeto autoral, o Rafi, cujos detalhes ainda são guardados a sete chaves. “Ser chef negro é comum, até porque estamos na capital com maior porcentagem de pessoas negras fora da África. Mas, ser um profissional de sucesso e ser relevante é um dos maiores desafios, porque as oportunidades não são iguais e o mercado valoriza muito mais os profissionais de fora do que os soteropolitanos”, afirma o chef, que já esteve à frente do tradicional Maria Mata Mouro, no Pelourinho.

“Quando pensamos em chefs negros de destaque em Salvador apenas uns 5 nomes vêm à mente e muitos não estão na frente das grandes cozinhas e, quando estão, não são tão valorizados como qualquer outro chef não negro. Desde cedo, entendi que para ter alguma relevância, deveria ser sempre o melhor, falar bem, saber me apresentar, fazer um bom network, estar nas discussões mais relevantes…”, reflete ele, que foi “encontrado” pela cozinha aos 18 anos, quando não sabia o que fazer da vida e fez curso de cozinheiro do Senac. De lá para cá, desde 2011, ele fez faculdade, morou fora do país, em Doha, no Qatar, onde teve a oportunidade de trabalhar em restaurantes de excelência.

Chef Alan Cerqueira | Foto: Reprodução/Redes Sociais

“Precisei mostrar mais do que outros para ser reconhecida. Enfrentei preconceitos, mas sempre trabalhei duro, me mantendo fiel a mim mesma, e isso me trouxe respeito e reconhecimento”, relembra Lúcia Cristina, filha de Dona Madá e irmã de Carlinhos Brown. À frente do restaurante da família, o D’madda Gastronomia, no Candeal, ela acredita que aos poucos uma evolução é percebida, mas ainda lentamente. “O cenário está mudando, aos poucos. Nossa cultura e sabores estão ganhando mais espaço e respeito, mas ainda temos barreiras para quebrar. A valorização tem crescido, mas precisamos de mais visibilidade“, defende.

“Vem mudando, mas mudando muito lentamente, porque a visão ainda essa de negro é só cozinheiro, não pode virar chef. Que sempre está atrás do fogão, que não pode entrar para a alta gastronomia”, reclama Vini, que chegou a cursar Direito, antes de começar sua história de amor à primeira vista com a Gastronomia, inspirado pela avó. Por isso, para muitos chefs, comandar um restaurante vai além de fazer comida: é um ato “político e cultural”, como defende Ana Célia, do Zanzibar, referência para muitos dos nossos entrevistados.

Ana Célia | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Seu restaurante é, há mais de 40 anos, considerado um reduto da comida africana e suas releituras, onde a chef mescla sua habilidade com os temperos, conhecimentos sobre as preferências das divindades africanas e o respeito à religiosidade. Ao se envolver no movimento negro, ainda jovem, ela despertou o desejo de criar um espaço para gente preta, atualmente instalado no Santo Antônio Além do Carmo, misto de restaurante e espaço cultural, reconhecido pela valorização da ancestralidade, presente, de uma forma ou de outra, na comida dos chefs com quem conversamos.

“A cultura negra inspira minha culinária, sim. Tenho memórias muito fortes da minha infância, dessa coisa de família, de comer juntos. Meu pai amava comer e eu amava cozinhar para o meu pai. Minha mãe foi doceira, foi quituteira”, relembra Nara Amaral, à frente do disputado Di Janela, na Saúde, onde famosos se misturam com anônimos.

Nara Amaral

“Em uma época da minha vida, passei 2 anos em Angola, no sul, na fronteira com a Namíbia. Sou formada em Administração de Empresas e fui lá para dar aula. Só que eu gosto de conhecer as culturas e, para mim, isso é muito rico. Ensinava à funcionária da nossa casa, que era uma casa de professores, a fazer a nossa comida baiana. Eu também fazia questão de cozinhar para os professores e conhecer a cultura deles. Eu trago um pouco disso para a minha cozinha“, destaca a chef, que abriu o restaurante depois de receber elogios a sua comida, quando fornecia marmitas para seus colegas de trabalho.

Chef Cris comanda o D’Madda, no Candeal | Foto: Reprodução/Redes Sociais

A cultura negra está também presente na cozinha de Lúcia Cristina. “Está nos temperos, nos ingredientes e na maneira de preparar. Cada prato carrega uma memória, um pedacinho da minha história e da minha herança”, defende a chef, que vê o ato de cozinhar como uma maneira de cuidar das pessoas e, ao mesmo tempo, mostrar sua identidade. “Desde cedo, a vida me mostrou que a cozinha tem poder de contar histórias e de fazer sentir o carinho de quem prepara e claro, de mostrar para que veio“, conta a filha de Dona Madá, que aconselha os jovens negros que querem começar a trabalhar na área a serem autênticos, estudiosos e fortes. “Nosso lugar também é na alta gastronomia e a cozinha precisa de nossas histórias e do nosso tempero”, determina.

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