Há muita coisa que Alessandra Sampaio, viúva do jornalista Dom Phillips, esqueceu sobre o período depois do desaparecimento e da confirmação da morte do marido. Uma das exceções ela lembra em detalhes — a entrevista de uma mãe que perdeu o filho.
“Ela dizia: ‘você tem duas opções quando perde uma pessoa muito querida: ‘ou afunda na dor, ou segue adiante se engajando de alguma forma’”. Alessandra, por um caminho que avalia “natural”, seguiu a segunda. “Tinha a responsabilidade de levar o legado dele adiante”.
O jornalista inglês cobria temas ambientais, como os conflitos fundiários e os povos indígenas. Em junho de 2022, ele desapareceu junto com o indigenista Bruno Pereira, no Vale do Javari, na floresta Amazônica. Os dois foram assassinados. Os criminosos estão presos.
Um ano depois, a viúva lançava o Instituto Dom Phillips, voltado para preservar o legado do trabalho do marido e preservar a Amazônia. “Acho que é uma transformação, de não ficar só na dor. O trabalho do instituto é focado na educação, ecoar essas vozes da floresta. Estou fazendo um trabalho que acredito, honrando o nome e a causa dele“.
O repórter será homenageado pelo Simpósio de Jornalismo e Literatura que aconteceu no próximo dia 12, na Associação Bahiana de Imprensa, na Praça da Sé. A designer, que se afastou das antigas atividades para se tornar ativista, receberá a homenagem em nome do marido. Os dois viviam em Salvador antes da morte de Dom. Ela, que é baiana, voltou para o Rio de Janeiro, onde cresceu.
“O Instituto Dom Philips me preenche, me dá alegria. Eu tenho mil planos e tenho que viver até os 90 ano para cumprir todos eles [risos]”, diz Alessandra. “Quando você assume uma responsabilidade de um sentido para a sua vida, você tem que estar bem”.
CORREIO: O Filme “Ainda Estou Aqui” traz a história de Eunice Paiva, cujo marido foi sequestrado pela Ditadura. Ela transformou a luta contra a ditadura em uma luta dela. Quando você percebeu que queria, ou devia, transformar a luta de Dom e a sua dor da perda em uma luta?
Alessandra Sampaio: Eu li uma coisa muito interessante de uma mãe que perdeu o filho: ‘você tem duas opções quando perde uma pessoa muito querida, ou afunda na dor, ou segue adiante se engajando de alguma forma’.
Então, para mim, o caminho estava claro desde o início: levar o legado de Dom. Dom tinha uma predisposição de ouvir as pessoas, isso era dele. E ele estava muito ligado a essa causa amazônica, e sempre me falava que se as pessoas soubessem o que acontece lá, naturalmente as pessoas se engajaram em proteger essa floresta. O que Dom conseguiu, de conhecimento, de confiança, de vivências… ele trilhou um caminho raro na Amazônia.
Quando ele morreu, eu ainda não tinha ido à Amazônia. Quando eu fui até lá, entendi. Então, a gente criou o instituto Dom Phillips, que surge para mim um desenrolar natural, pela responsabilidade de levar o legado dele adiante. Não dava para trabalhar só com moda, não fazia mais sentido para mim.
Foi uma coisa logo depois, logo no funeral, já existia uma demanda interna. O que eu vou fazer? Pensando muito, muito cuidado, de ser uma coisa assertiva, que tivesse consonância com o trabalho dele, e tentando seguir os passos dele.
Isso fez parte do seu processo de luto?
Acho que foi uma transformação, de não ficar só paralisada na dor. O trabalho do instituto é focado na educação, ecoar essas vozes da floresta, de quem protege, é um movimento educacional, que eu acredito que mude consciências. Porque parece que as informações estão chegando, mas as pessoas não estão tão conscientes. Eu acredito no caminho da educação.
Esse seu novo trabalho te coloca em contato direto com problemas históricos na região, como a violência. Você tem medo?
O medo não existe ainda. Eu estou bem atenta, tenho os meus cuidados. Nunca recebei nenhum tipo de ameaça. Pode ser que um dia isso mude, mas eu realmente estou muito tranquila, estou muito paz.
O que ir para Amazônia significou para você, no sentido de ir ao local onde seu marido morreu, e também de conhecer a floresta sobre a qual ele falava?
A Amazônia que eu conhecia, eu conhecia através dele, e já me encantava. Eu já fui para lá muito apaixonada. Já fui muito influenciada. Quando eu fui pela primeira vez, o impacto que me causou a floresta, e que muitas pessoas sentiriam, é difícil colocar em palavras, aquela grandiosidade, aquela beleza, aquela exuberância. Me impactou. E eu tenho muita vontade de voltar muitas vezes. E vai ser sempre um trânsito.
Você se enxerga como ativista hoje?
Não me prendo muito a nomes. Estou fazendo um trabalho que eu acredito, honrando o nome e a causa dele. Só mudando nosso entendimento sobre o que estamos perdendo, sobre coisas que nem conhecemos, toda essa diversidade maravilhosa que nem temos noção. Isso é muito importante.
Não só pelo legado do Dom, mas que essa educação tenha esse poder de trazer as pessoas para a causa. É o que interessa, é o que representa o Dom. De compartilhar com as pessoas a beleza da vida, que está ali tão presente.
Como está sua rotina?
A gente tem reunião sempre. Nosso primeiro projeto, “amazônia sua linda”, nome inspirado na última postagem do Dom no Instagram, vai mergulhar para escutar, e fazer um trabalho com os jovens, com a importância deles com sua inquietação, seu desejo de mudança. Vamos produzir conteúdos a partir dessas conversas com as comunidades e levaremos esse material para essas escolas. Porque a gente entende a importância de conectar territórios.
Lá, é tudo tão diverso, tão complexo, e tão desafiador, que eu acho que o conhecimento nunca vai cessar. Tenho esse desejo de mergulhar na complexidade, e, através do instituto, compartilhar. A Amazônia não é só um bloco de floresta, há muita diversidade. E uma riqueza de conhecimento, de sabedoria ancestral. Acho que vou passar a vida inteira longe de saber tudo. A gente precisa entender que respostas podem vir de la e que bom que o instituto pode fazer essa ponte para trazer conteudo que sensibilize.
Que respostas surgiram para você?
O modo de vida, o entendimento do bem viver, que e viver em harmonia, respeito, entendendo que todas as formas de vida tem seu valor, a importância de ver o valor da terra. São muitas respostas, que me deixam cada vez mais apaixonada.
Toda tragédia é seguida de um pedido por justiça. Que justiça você acha possível construir em um caso com esse?
Não sei que tipo de justiça. Mas eu só ficaria tranquila se entendesse que os povos indígenas e as comunidades tradicionais estão preservados nos seus modos de vida, nos seus territórios. Isso iria me trazer muita alegria.
Com relação ao caso de Dom, eu confia na justiça. Acompanho de perto com meus advogados, e acredito que esse processo está sendo muito bem conduzido pelas autoridades, realmente acredito que está sendo feito um bom trabalho. Tento não ficar muito apegada a isso, mas acredito que a justiça será feita.
Tem muita gente bacana trabalhando nesse caso, não só no lado do judiciário, mas em diferentes frentes. Acho muito bonito o empenho de muita gente que ficou muito tocada com o caso, e sinto que há um trabalho robusto sendo feito.
Como conciliar essa nova razão de luta e o seguir da sua própria vida?
São coisas atravessadas. Virou um sentido para minha vida. O Instituto Dom Philips me preenche, me dá alegria. Eu tenho mil planos e tenho que viver até os 90 ano para cumprir todos eles [risos]. Mas para fazer esse trabalho, eu me cuido em relação a tudo, psicológico, exercício, alimento.
Quando você assume uma responsabilidade de um sentido para a sua vida, você tem a responsabilidade de estar bem. Eu sigo com os dois em paralelo, mas não descuido de mim.
SERVIÇO: SIMPÓSIO DE JORNALISMO E LITERATURA
Onde: Sede da ABI, na Praça da Sé
Quando: 12 de setembro, das 8h às 17h30.
Como participar: Inscrição no Sympla.