Já diria o governador Otávio Mangabeira: “pense num absurdo, na Bahia tem um precedente”. A história nos mostra que a probabilidade desse precedente ter se passado em Feira de Santana é grande, ainda que muita gente do litoral não faça ideia disso. Segunda maior cidade do estado, com uma população superior a 616 mil habitantes, a icônica Princesa do Sertão virou sinônimo de vanguarda, hype e trending topics.
Seja no carnaval fora de época, ou na crise sanitária; no cinema documental, ou na adulteração de bebida; na investigação de fraude, ou no comércio de produtos de origem duvidosa, não tem jeito, Feira sai na frente e acelera como se não houvesse amanhã em uma BR-324 recapeada, sem radar ou praça de pedágio.
Professor, poeta, artista visual e cidadão que “sempre gostou de ser de Feira” e achava cafona os colegas que tinham vergonha da cidade, Márcio Junqueira, 44 anos, atribui esse pioneirismo tanto às questões geográficas – ser o maior entroncamento rodoviário do Brasil – quanto às subjetividades oriundas do distanciamento do litoral.
“Talvez o fato de estarmos mais afastados do mar, no agreste, não nos dá as facilidades imediatas. Isso cria uma subjetividade, uma certa angústia e vontade de intervenção”, disse. E completa: “Feira é essa cidade onde as pessoas estão constantemente em trânsito pela necessidade de buscar um futuro melhor”.
Para Uyatã Rayara, músico, documentarista e artista visual, Feira de Santana é uma encruzilhada acolhedora, mas ao mesmo tempo hostil. “A cidade está em contato com diversas culturas e essas trocas são constantes e intermitentes”, definiu. Uyatã é autor do Cordel da Caixa D’Água e participou das produções dos documentários Batuques da Fêra e Bié dos Oito Baixos, disponíveis no YouTube.
Márcio Junqueira afirma que esse intercâmbio está ligado à metáfora do nome da cidade. “A feira é um local de troca mobilizada pelo dinheiro, mas não só por isso. É uma cidade muito potente, mas também ingrata. Uma coisa que acho maravilhosa é que as pessoas que saíram de lá são muito sofisticadas e argutas”.
Ele relembra alguns nomes, como o quadrinista Marcelo Lima, e o também poeta Rodrigo Lobo Damasceno, como exemplos de artistas sofisticados que precisaram deixar a terra natal para viver a arte, mas levam Feira de Santana em suas obras. “Sempre que encontro Rodrigo digo que quero morar na Feira dos seus poemas”, declarou.
Apaixonada pela cidade, a arquiteta e criadora de conteúdo Manalula (@manalula) conta que visitar a história de Feira de Santana é mergulhar em um universo rico e repleto de curiosidades. Ela lembra, por exemplo, que o primeiro historiador notório da cidade foi o norte-americano Rollie E. Poppino, que virou nome de rua.
O gringo esteve na região na primeira metade da década de 1950, pesquisando a história da Princesa do Sertão, para a elaborar sua tese de doutorado Princess of the Sertão: A history of Feira de Santana, na Universidade de Stanford.
A tese foi transformada no livro Feira de Santana, publicado em 1968. “Pessoas de vários locais do mundo passaram por aqui e fizeram história. Essa história está no nome das ruas e é importante trazê-las para valorizar a região”.
Manalula lembra ainda que a cidade já teve no seu conjunto arquitetônico um projeto de Oscar Niemeyer, demolido em 2005, o prédio da Estação Nova, na antiga avenida Anchieta, atual João Durval Carneiro. A sede da estação da Rede Ferroviária Federal foi inaugurada em 1958 e funcionou até 1964.
Plantão Médico Feira City
Entre prosas e versos, Feira tem aparecido como primeiro cenário em diversas situações pitorescas. Quando o noticiário brasileiro foi invadido com os casos de intoxicação por metanol em bebidas alcoólicas destiladas, foi a Princesa do Sertão que registrou a primeira morte suspeita por ingestão acidental da substância. De acordo com as secretarias de Saúde Municipal e do Estado, o paciente, de 56 anos, deu entrada na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Queimadinha e morreu na madrugada do dia 03 de outubro.
Essa, no entanto, não foi a primeira crise de saúde a realizar seu primeiro ato em solo baiano na cidade. Há mais de cinco anos, a devastadora covid-19, maior problema sanitário já ocorrido no planeta, chegou oficialmente à Bahia através de Feira.
Em 6 de março de 2020, a cidade confirmava o primeiro caso da doença no estado, um marco na trajetória do caos que viria a se instalar pelos dois anos seguintes. A paciente de 34 anos contraiu o vírus na Itália, enquanto fazia um tour por Roma e Milão. Feira de Santana foi tão pioneira que notificou a doença antes mesmo da Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar o estado de pandemia, que aconteceu no dia 11 daquele mês.
Primeira micareta
Mas se engana quem pensa que esse potencial precursor está restrito às pautas da saúde. Feira é dianteira também no quesito folia. Foi lá, em 27 de março de 1937, que aconteceu o primeiro carnaval fora de época do Brasil. Naquela data, nascia a Micareta de Feira, idealizada pelo coletor Maneca Ferreira, ou simplesmente “Maneca da Coletoria”, e pelo professor Antônio Garcia.
Tudo começou quando Maneca, que também criava carros alegóricos, não ficou nada satisfeito com o cancelamento do Carnaval por conta da chuva que caía sobre a cidade. Doido para botar o bloco na rua, conseguiu que a prefeitura mudasse a data do festejo.
Por estar fora do período momesco, não ficaria bem chamar a festa de Carnaval. Essa então foi batizada de Micarême, nomenclatura francesa de um festejo popular da terra de Napoleão que celebra o meio da quaresma.
Fato é que Feira e região curtiram aquele negócio e a moda pegou. Um concurso popular realizado na cidade escolheu o nome Micareta, uma versão abrasileirada e mais palatável da expressão francesa, para denominar o carnaval fora de época nos anos seguintes. De lá para cá, já são 88 anos de tradição.
Assim, Feira de Santana deu origem à festa e registrou o verbete micareta no léxico nacional. Então, você que se esbalda no Carnatal, Fortal, Pré-Caju, Sertão Folia, Curitiba Folia, Miconquista, Micareta SP, Micarand, Micareta de Beagá e tantas outras por aí, lembre sempre da Princesa Sertaneja nas suas orações. Afinal de contas, foi graças a ela que essa bagaça começou.
Revolucionários da música
Quem gestou a micareta também pariu o pai da Axé Music. Luiz Caldas, um dos músicos mais talentosos e revolucionários desse país é cria do bairro do Tomba. Multi-instrumentista, cantor e compositor, ele foi o mentor da mistura que colocou no mesmo balaio ritmos como reggae, zouk, frevo e rock.
Décadas depois, o útero musical feirense deu a luz a ninguém menos que Roosevelt Ribeiro de Carvalho, o Russo Passapusso, capitão do Navio Fantasma que assombrou o Carnaval ressignificando o conceito de pipoca com a BaianaSystem e sua fusão explosiva de hip-hop, reggae, arrocha, samba e letras que se tornaram hinos do povo.
Luz, Câmera e Feira em Ação
Feira de Santana é também vanguarda na Sétima Arte. Em 2011, a Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas (ABD) decretou o dia 7 de agosto como o Dia Nacional do Documentário Brasileiro. A escolha da data se deve ao nascimento do cineasta Olney São Paulo (1936 – 1978), um dos maiores expoentes do documentário da nossa história.
Sim! Olney também era de Feira. Na verdade, ele nasceu em Riachão do Jacuípe, mas ainda criança se mudou com a família para a cidade vizinha, que à época já contava com diversas salas de cinema.
Na adolescência, viu desembarcar em Feira a equipe de Alex Viany para gravar o episódio Ana, do filme A Rosa dos Ventos. A produção alemã retrata o trabalho feminino através de cinco episódios que se passam no Brasil, França, Itália, União Soviética e China.
Além de Viany, estavam envolvidos no capítulo brasileiro nomes como a atriz Vanja Orico e o escritor/roteirista Jorge Amado. Aquele movimento encantou Olney, que passou a se corresponder através de cartas com Viany e Jorge.
Em 1955, deu os primeiros passos como diretor. Sem recursos para montar a película, ousou filmando a história na ordem dos acontecimentos, parando o filme dentro da máquina. Assim, nasceu Um crime na rua. Sua filmografia inclui ainda Manhã Cinzenta, O Forte, O Grito da Terra e Como Nasce Uma Cidade, documentário que homenageia Feira de Santana.
Olney morreu em 1978, em decorrência de sequelas da tortura que sofreu durante o regime militar. O governo da época o acusou de crimes que não cometeu e de distribuir ilegalmente o curta-metragem Manhã Cinzenta, que driblou a censura e chegou aos circuitos internacionais.
Romance Policial Vivo
São inúmeras as histórias passadas em Feira que parecem escritas por Agatha Christie. Algumas delas impublicáveis, outras exibidas no Fantástico, mas todas protagonizadas por feirenses reais de carne, osso e muita personalidade.
Márcio Junqueira lembra que numa época pré-blogueiragem uma jovem do Jardim Cruzeiro, bairro respeitado da cidade, se casou com um dos garotos mais ricos da região. O casal, digno de coluna social, teve um filho, mas se separou alguns anos depois.
A moça, por sua vez, manteve a pose de rica engajada. Viajava pelo mundo, defendia minorias identitárias e era admirada por onde passava. Era uma influencer da era analógica. Anos depois, descobriu-se que ela, na verdade, era peça fundamental de um esquema de tráfico internacional de mulheres. Coisa pesadíssima.
Mas a cidade também produz suas heroínas. A mais recente delas descobriu a fraude do INSS que atravessou dois governos e foi responsável pela demissão de integrantes da cúpula do órgão. O esquema, entre os anos de 2019 e 2024, desviou cerca de R$ 6,3 bilhões de aposentados e pensionistas em todo o Brasil.
O prejuízo teria sido maior caso não fosse o sensor à prova de baratino da aposentada feirense que se ligou nos descontos indevidos e expôs o golpe. Ao revisar os contracheques, notou os desfalques e prontamente acionou o Ministério Público Federal, que iniciou as investigações.
Pirataria Cult e alta cultura acessível
Lá pelas bandas de 2008, a cinefilia cult encontrava em Feira de Santana um acervo de fazer inveja a qualquer museu de cinema. Naquele tempo, a cidade já tinha uma barraca de DVDs especializada em filmes de arte pirateados. A famosa Barraca do Índio vivia lotada de sedentos pela Sétima Arte que compravam ali clássicos do Cinema Soviético, Nouvelle Vague, Expressionismo Alemão e obras de todos esses movimentos que, muitas vezes, estão trancadas em salas pouco visitadas pelo grande público.
Ainda nessa pegada de oferecer ao grande público cultura de alto padrão, foi criado na cidade o Feira Coletivo Cultural, grupo responsável por eventos como o Feira Noise, que acontece desde 2009 levando grandes apresentações para a cidade. “Vi dezenas de shows de figuras inusitadas como O Terno, Anelis Assumpção e muitas bandas de jazz. O festival faz essa articulação e é uma coisa maravilhosa”, conta Márcio Junqueira.
Além disso, toda segunda-feira, a partir das 11h, acontece o Samba da Praça do Tropeiro, liderado pelo mestre Luizinho dos Oito Baixos. Aberta ao público, a apresentação é o puro suco do samba rural, uma manifestação própria da região tocado com sanfona de oito baixos, zabumba, além de outros instrumentos mais comuns ao samba apresentado no Recôncavo.
Pouco mimados
Apesar de toda a efervescência, pujança e pioneirismo, o reconhecimento aos artistas de Feira e região pela própria cidade ainda não se dá na mesma proporção. Para Márcio Junqueira, Feira amou e mimou muito pouco seus artistas.
“Mesmo Luiz Caldas não teve o reconhecimento que merece. A primeira cantora feirense que a cidade amou de verdade foi Rachel Reis, acho isso uma conquista bonita para ela que vem de uma família de artistas e também é compositora. Isso é bastante significativo”, disse.
Uyatã Rayara conta que o seu reconhecimento aos artistas da cidade veio como uma resposta à imagem negativa e estereotipada que insistiam em pintar sobre ela. “Quando criança, a gente sempre ouvia que Feira só tinha bar e brega. Aí tudo isso mexeu muito comigo”, disse.
Ele lembra que o encontro com o Mestre Cláudio, do grupo de capoeira Angoleiros do Sertão, foi decisivo na sua vida. “Ele internacionaliza a capoeira. Foi muito marcante para fortalecer em mim essa identidade feirense e mostrar que Feira tem tudo e ainda dá troco”.
Inovador, o Mestre Cláudio criou uma bateria própria para tocar com os Angoleiros do Sertão, que produz um samba tipicamente sertanejo e leva a música do agreste para o mundo. Os instrumentos da bateria da capoeira Angola são feitos por ele mesmo todos com matéria prima da natureza, seus pandeiros são de couro, seu reco-reco é de bambu, o agogô é de sapucaia e assim por diante.
Deu no New York Times
Jorge Ben Jor que me desculpe, mas quem é a feira de Acari perto da de Santana? Em 26 de junho de 1966, o The New York Times publicou uma reportagem destacando o comércio de gado na Princesa do Sertão. O repórter Allen Yung esteve na cidade e acompanhou o movimento no Campo do Gado, espaço hoje ocupado pelo Museu de Arte Contemporânea Raimundo de Oliveira, o Fórum Desembargador Filinto Bastos, o Colégio Municipal e a Praça João Barbosa de Carvalho.
A matéria When it’s roundup time way down in Brazil descreve a rotina da feira realizada às segundas-feiras, a movimentação dos vaqueiros, os trajes de couro usados e a alegria que tomava conta do local. A reportagem também ressaltou a importância econômica da atividade comercial. À época, a feira de gado de Feira de Santana era a maior do Brasil e atraía pessoas de todo o país.
Se existe, tem no Feiraguay
Falando em feira, é impossível falar dessa cidade sem passar pelo Feiraguay. Mais do que um centro comercial, o espaço, hoje centralizado na Praça Presidente Médici, é atração turística e parte significativa do imaginário e coleção de memórias afetivas feirenses.
“Lembro muito de ir ao Feiraguay. Minha tia viajava até o Paraguai e trazia milhares de coisas de lá. Um amigo do meu pai chamado Bilu foi preso uma vez na volta da Ponte da Amizade. Minha mãe rezou muito para ele sair da prisão e, quando ele foi solto, e em agradecimento deu uma Nossa Senhora de quase um metro de altura para ela”, contou Márcio Junqueira.
O espaço é o maior centro de comércio popular do Norte/Nordeste, com mais de 3 mil vendedores cadastrados em 630 boxes, com fluxo diário de cerca de 6.500 clientes. Lá se encontra tudo: roupas, calçados, eletrônicos, utilidades para o lar, cama, mesa e banho. É um mundo.
Manalula, que já participou de uma intervenção artística no centro comercial, conta que visitar o Feiraguay é o melhor programa de sábado. “Gosto de ir para lá e depois almoçar um cupim nos bares da região. Paro o carro na Praça da Matriz para poder ver o coreto, as árvores e a estátua do padre Ovídio, que é outra figura muito importante da cidade”, concluiu.
Representatividade e Caixa d’Água do Tomba
A Caixa d’Água do Tomba é uma espécie de farol que informa aos viajantes que o caminho está passando por Feira de Santana. Na vida de Manalula, o monumento arquitetônico é um símbolo de mudança de rumo profissional.
Durante a pandemia, para matar o tédio, ela começou a desenhar e postar algumas artes, que receberam elogios e comentários. Em 2021, compartilhou um desenho de monumentos de Feira de Santana que foi bastante elogiado.
Passado o período pandêmico, Manalula resolveu ir numa festa à fantasia caracterizada como a inconfundível Caixa d’Água do Tomba e filmou todo o processo de construção da roupa. “Quando cheguei na festa, todo mundo começou a me parar. Dei entrevista para blogueiras, fiz muitas fotos, foi um sucesso”, relembrou.
Ela então percebeu que havia uma carência de representatividade de Feira de Santana nas redes sociais e decidiu ocupar esse espaço. Manalula passou a produzir conteúdos voltados para a valorização e resgate histórico da cidade e nunca mais parou. Hoje, já são mais de 47 mil seguidores no Instagram.