Muito antes de o samba ganhar a grandiosidade das avenidas ou se tornar sinônimo de identidade nacional, ele já pulsava no Recôncavo Baiano. Ali, entre o barro, a cana-de-açúcar e a resiliência da diáspora africana, nasceu algo que transcende a música: nasceu uma civilização baseada no ritmo.
Neste 2 de dezembro, celebrar o samba na Bahia exige um olhar para trás, não por nostalgia, mas para entender a modernidade. O Samba de Roda do Recôncavo, reconhecido pela UNESCO em 2005 como Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, não é apenas folclore. É a matriz sofisticada que alimenta tudo o que entendemos hoje por “baianidade”, da música pop à alta moda.
Para compreender a Bahia contemporânea, é preciso visitar a “geografia do compasso”. Cidades como Santo Amaro, Cachoeira e São Félix guardam a gênese do gênero. Diferente do samba urbano carioca, que se desenvolveu nas favelas e morros no início do século XX, o samba baiano manteve uma ligação umbilical com o semba angolano e as tradições do candomblé.
É aqui que surge a distinção fundamental defendida por mestres e pesquisadores: a diferença entre o samba chula e o samba corrido.
O samba chula é a “alta cultura” do Recôncavo. É o samba para ouvir, declamar e respeitar. Ninguém dança enquanto o mestre canta a chula, uma poesia musicada, muitas vezes improvisada, acompanhada pela viola machete. Só quando a viola “chora” e o refrão entra é que a roda gira. Essa etiqueta, essa elegância no trato com a música, é o que confere ao samba baiano um status de “aristocracia popular”.
A maior prova da vitalidade desse legado é como ele se infiltrou na cultura de massa sem perder a essência. O exemplo máximo reside na figura de Dona Edith do Prato (1916-2009). A matriarca de Santo Amaro transformou um utensílio doméstico, um prato de louça e uma faca de metal, em um instrumento de percussão complexo, com uma síncope que desafia qualquer metrônomo.
Quando Caetano Veloso e Maria Bethânia, filhos da mesma terra, levaram a sonoridade de Dona Edith para os palcos mundiais, não estavam apenas fazendo uma homenagem; estavam afirmando que a modernidade musical brasileira precisava pedir a bênção ao Recôncavo.
Hoje, essa influência é visível e audível em Salvador. Artistas contemporâneos como Mariene de Castro e Roberto Mendes, este último, um teórico vivo da chula, não deixam a tradição virar peça de museu. Eles a colocam no palco, vestindo-a com arranjos modernos, mas mantendo a estrutura rítmica sagrada.
A estética do samba de roda também transbordou para o visual. O “chic” do Recôncavo, as saias rodadas de richelieu, o uso ostensivo de joias de contas, o torço impecável na cabeça, saiu dos terreiros para influenciar a moda praia de luxo e o design de interiores na Bahia. O que era vestimenta de rito tornou-se símbolo de sofisticação e identidade visual do estado.
O Samba de Roda do Recôncavo nos ensina, há séculos, sobre coletividade e polifonia. Enquanto o mundo discute o futuro da música em tempos digitais, a Bahia reafirma que sua vanguarda é completamente ancestral.
A roda de samba não tem começo nem fim, não tem solista que ofusque o coro. Ela é circular, democrática e, acima de tudo, resistente.
Celebrar o Dia do Samba na Bahia é reconhecer que, embora o ritmo tenha ganhado o mundo e novas roupagens, seu umbigo continua enterrado no solo fértil do Recôncavo, onde o prato, a faca e a palma da mão ainda são a mais alta tecnologia de conexão humana.
Como diria o baiano Roberto Mendes: “O samba não se aprende no colégio. O samba é um comportamento”. E é esse comportamento que mantém a Bahia, inegavelmente, no topo do mundo cultural.