Os Donos do Jogo chega às mais vistas da Netflix como a nova grande saga criminal brasileira, mirando no universo do jogo do bicho no Rio de Janeiro e entregando um épico de máfia com sotaque, figurino e conflitos bem cariocas. Criada por Heitor Dhalia ao lado de Bernardo Barcellos e Bruno Passeri, a série mistura crime, melodrama familiar e comentários nada sutis sobre poder, política e dinheiro fácil no Brasil contemporâneo.
Lançada em 29 de outubro de 2025, a produção rapidamente dominou o Top 10 da plataforma no Brasil e entrou no radar global, liderando o ranking de séries de língua não inglesa na Netflix e já garantindo renovação para uma segunda temporada.
Ascensão de Profeta e guerra entre famílias
O eixo dramático de Os Donos do Jogo acompanha a rápida ascensão de Profeta (André Lamoglia), jovem de origem humilde que se infiltra na alta cúpula da contravenção carioca ao mesmo tempo em que quatro famílias rivais – Moraes, Guerra, Fernandez e Saad – disputam o controle do império do jogo do bicho.
Sem revelar reviravoltas, dá para dizer que a série aposta numa narrativa de tabuleiro: cada família move suas peças em silêncio, trama alianças, quebra acordos e testa os limites de lealdade, sempre com um olho nos lucros e outro na possibilidade de legalização dos jogos de azar e na entrada de grupos estrangeiros nesse mercado bilionário.
Elenco forte e personagens maiores que a vida
Um dos trunfos da série é o elenco, que mistura veteranos de peso e rostos em ascensão. André Lamoglia ganha seu papel mais ambicioso na Netflix depois do destaque internacional em “Elite”, agora como Profeta, um protagonista que equilibra charme, frieza e vulnerabilidade sem nunca perder o pé na malandragem carioca.
Juliana Paes vive Leila Fernandez, figura central de uma das famílias tradicionais do bicho, num registro que combina glamour, cálculo e um certo desespero por manter o status num mundo dominado por homens. Ao lado dela, Chico Díaz, Otávio Muller, Roberto Pirillo e Tuca Andrada compõem patriarcas e capos com cara de história – figuras que parecem ter atravessado décadas de violência, acordos e traições.
Do lado da nova geração, Xamã, Giullia Buscacio, Mel Maia e Ruan Aguiar surgem como herdeiros inquietos, mais conectados à linguagem das redes sociais e à lógica da ostentação, o que cria um atrito interessante com a velha guarda. A série funciona especialmente bem quando coloca essas gerações para se chocar, revelando como o crime se moderniza, mas continua preso às mesmas estruturas de machismo, hierarquia e culto ao dinheiro.
Direção de máfia à brasileira
Na direção, Heitor Dhalia, Rafael Miranda Fejes e Matias Mariani apostam em uma abordagem que mistura códigos clássicos de histórias de máfia – reuniões em salões elegantes, festas suntuosas, acertos em corredores vazios – com uma textura muito específica do Rio de Janeiro, dos bairros de classe média alta aos becos populares.
A câmera frequentemente gruda nos personagens, sublinhando emoções à flor da pele e a sensação de que tudo pode desandar em segundos. A montagem privilegia paralelos entre famílias, espelhando celebrações e crises para mostrar como, por trás de cada fachada de poder, há rachaduras, ressentimentos e medos parecidos.
Fotografia, trilha e o “carioquês” como estética
A fotografia investe em contrastes: luz dourada para os ambientes de luxo, sombras marcadas e néon para o submundo, criando um visual que flerta com o glamour, mas não disfarça a brutalidade do universo retratado. A paleta de cores, carregada em verdes, dourados e vermelhos, dialoga com o imaginário de cassinos e apostas, reforçando a ideia de um Rio que vive permanentemente em roleta russa.
A trilha sonora mistura funk, rap e pagode com temas instrumentais mais clássicos, ajudando a situar a série no presente sem abandonar o clima de tragédia anunciada. O “carioquês” – na fala, na música e no figurino – não é apenas fundo de cena, mas parte da identidade da obra, algo que a Netflix vinha ensaiando em produções anteriores e agora assume com mais confiança.
Ficção, realidade e a polêmica do jogo do bicho
Embora seja declaradamente uma obra de ficção, Os Donos do Jogo bebe em fontes bem reconhecíveis. A série se inspira em histórias reais da máfia do bicho no Rio e dialoga com o documentário da Globoplay “Vale o Escrito”, que já havia exposto a rotina de bicheiros e suas dinâmicas familiares, ainda que a Netflix sublinhe a liberdade criativa do roteiro.
Esse jogo entre realidade e invenção dá à série um sabor extra: o espectador é convidado a reconhecer ecos do noticiário policial e da crônica carioca enquanto acompanha trajetórias romanciadas. Ao mesmo tempo, a produção abre margem para um debate incômodo sobre a glamourização da criminalidade – algo que já está aparecendo em colunas e análises na imprensa brasileira.
Ritmo, violência e construção de tensão
Com episódios de cerca de uma hora, Os Donos do Jogo prefere construir a tensão aos poucos, dando tempo para que o espectador entenda quem é quem dentro de cada família e como os interesses se cruzam. A violência, quando aparece, é gráfica o suficiente para chocar, mas evita o puro choque gratuito, estando quase sempre ligada a decisões estratégicas ou a falhas de cálculo dos personagens.
Há momentos em que a série alonga certos conflitos e corre o risco de se repetir em reuniões de cúpula e cenas de ameaça, mas o trabalho de atores e a crescente sensação de que qualquer detalhe pode deflagrar uma guerra aberta mantêm o interesse em alta. O gancho para a já confirmada segunda temporada, inclusive, reforça essa ideia de que o tabuleiro ainda está longe de uma definição.
Comparações e lugar no catálogo da Netflix Brasil
Depois do sucesso de “DNA do Crime”, a Netflix volta a apostar num thriller criminal brasileiro com ambição internacional. Aqui, no entanto, o foco sai das operações policiais e vai para dentro da máfia, aproximando Os Donos do Jogo tanto de clássicos como “O Poderoso Chefão” quanto de retratos urbanos à la “Cidade de Deus”, ainda que com um pé mais forte no melodrama de novela do que no realismo brutal.
Dentro do catálogo nacional da plataforma, a série ocupa um espaço interessante: é ao mesmo tempo entretenimento de alto impacto – com ação, romance, festas e ostentação – e um comentário sobre a naturalização da contravenção na cultura brasileira. É fácil imaginar o público maratonando pelos excessos visuais, mas saindo com alguma pulga atrás da orelha sobre como o jogo, o dinheiro e a violência atravessam o cotidiano do país.
Os Donos do Jogo é uma escolha certeira para quem gosta de histórias de máfia, tramas familiares cheias de segredos e um retrato estilizado – mas reconhecível – do Rio de Janeiro. Com elenco afiado, direção segura e um universo narrativo já planejado para se expandir em novas temporadas, a série se consolida como uma das apostas mais fortes da Netflix Brasil nos últimos anos e merece ser conferida com atenção, de preferência sem maratonar no automático, para aproveitar cada movimento desse tabuleiro de poder.