Há 20 anos, Salvador recebia um novo morador, vindo do outro lado do Atlântico, pertencente a outra cultura, outro idioma e costumes muito contrastantes aos daqui. Na bagagem, ele trazia um título público de investimentos do porto de Salvador, herdado da avó, e uma grande admiração pela obra de Jorge Amado. Foi o bastante para que o francês Bernard Attal escolhesse a capital baiana como sua nova casa. Duas décadas depois, é a ele que a cidade reconhece pela restauração de uma construção emblemática: o Trapiche Barnabé.
Em 2002, o então economista fez uma revisão de sua vida ao presenciar muito de perto o atentado do 11 de setembro, em Nova York. Até tentou uma volta à França, mas não se readaptou ao território de origem. Com a descoberta da herança e um forte desejo de voltar aos amores antigos que faziam seu mundo ter sentido, o francês mirou na literatura e acertou na cidade que lhe abraçaria de vez: Salvador.
Aqui, Bernard Attal deixou de lado as formações em Economia e Direito, migrando completamente para as artes e o empreendedorismo na economia criativa. Hoje cineasta, mestre em Literatura e morador de Santo Antônio Além do Carmo, ele logo adquiriu o Trapiche Barnabé com planos muito ambiciosos para o que permitiam a burocracia e a boa vontade política da cidade.
“Todos os dias eu via o Trapiche Barnabé da janela da minha casa. Era uma situação deplorável. As ruínas davam lugar a um estacionamento que era invadido pela vegetação. Então adquiri a edificação com o meu sócio depois de muito tempo e muitas dificuldades”, conta Attal em entrevista ao Alô Alô Bahia.
Ele lembra ainda que, inicialmente, eles tentaram salvar o trapiche com medidas emergenciais, mas aponta as dificuldades no processo. “Quando você quer salvar um patrimônio histórico, você passa por muitos obstáculos e altos custos. Notre Dame, por exemplo, levou quase 1 bilhão de euros só em doações da iniciativa privada pra ser recuperada”, observa.

Trapiche Barbabé
Uma nova história para um patrimônio histórico
Na inspiração francesa do período que marcou a prosperidade econômica, avanço tecnológico e o florescimento cultural, o Trapiche Barnabé está finalmente pronto para viver a sua própria Belle Époque, na ambição de ser o epicentro cultural e de inovação, principalmente nas artes da capital baiana.
De estacionamento degradado a complexo cultural e econômico, o prédio adquirido em 2005 por Attal, agora passa a contar com um anexo, o Trapiche Pequeno, que já abriga 15 empresas que trabalham com fotografia, arquitetura, audiovisual, entre outros, e visa o fomento de pequenos empreendedores da economia criativa.
Após os últimos 10 anos em reforma, o prédio principal passa a ter capacidade para 2,7 mil pessoas em formatos diversos de ocupação do espaço. A estrutura original do século XVIII foi mantida e modernizada com a implementação de cobertura, placas de energia solar e a adequação às necessidades de segurança e acessibilidade, além da reforma de camarins e banheiros. A reforma foi possibilitada integralmente pelo capital privado, com parceiros mineiros e europeus.
Além de ser um investimento importante para uma área constantemente escanteada da cidade, a recuperação do Trapiche Barnabé é também uma declaração de amor do francês ao povo soteropolitano. “Eu sempre falo que estou aqui por conta do povo. A cidade me ofereceu várias histórias e abordagens para eu também construir a minha. É uma cidade muito rica culturalmente, tem um povo muito criativo e continua sendo uma fonte de inspiração pra mim”, conta o diretor, que é casado com uma baiana do subúrbio e aborda constantemente em seus filmes os temas sociais e raciais da realidade que acompanha aqui.

Trapiche Barnabé
O Trapiche e a negligência da memória baiana
Último vestígio da grande época dos trapiches de Salvador, que chegou a ter 50 deles formando o principal porto do Atlântico Sul, o Trapiche Barnabé é um desses prédios que sustentam a duras penas a memória de um passado essencial para se entender a história e a identidade baianas. Esse era o coração econômico da cidade, a porta de entrada do país.
Mas na Salvador que vê inertemente sua memória pegar fogo – em dois anos, dois grandes incêndios acometeram casarões no Comércio, um na Rua da Suécia em 2024, e outro há menos de um mês, que atingiu três edifícios – os desafios de empreendedores como Attal são ainda maiores.
“Esse desprezo pela memória e pela herança histórica é um grande desafio. Infelizmente, o brasileiro não respeita a sua memória. O patrimônio arquitetônico dessa cidade é incrível. Temos a conhecida herança barroca, mas temos muitas outras camadas porque Salvador é um dos últimos lugares do Brasil que ainda tem esse patrimônio que outras capitais já perderam”, aponta Bernard.
O incômodo do cineasta somado ao investimento no local motiva a intenção de abrir os olhos do poder público e da iniciativa privada para o potencial econômico do bairro do Comércio.
“Eu ficaria muito feliz se o Trapiche se tornasse uma inspiração para revitalizar o Comércio. O Comércio está morrendo. A prefeitura até realocou secretarias e mexeu na Praça Cairu, mas há muito abandono na região. Porém, não dá pra esperar que o poder público resolva tudo. A iniciativa privada precisa agir e assumir a recuperação da cidade. Há possibilidade de moradia, de investimentos diversos nas construções, mas os prédios estão pegando fogo”, observa.
“O Instituto do Cacau é um prédio do estado e está abandonado há mais de 10 anos. O museu é uma maravilha e foi completamente destruído porque pegou fogo. Há várias casas dos séculos XVII e XVIII que deveriam ser protegidas e reabilitadas, ocupadas de uma forma útil”, completa o cineasta.
Attal enxerga dois potenciais para a revitalização do Comércio: um distrito de economia criativa – como há em outras capitais pelo mundo, como Buenos Aires – já despertado pelo Trapiche Pequeno, e a consolidação de uma região residencial com potencial turístico.
“Para um bairro viver, ele precisa de moradores. Hoje, os investimentos imobiliários estão todos no Rio Vermelho, Ondina, Barra… Por que não podem vir pra cá? A cidade nasceu aqui. Cidades portuárias como Lisboa, Barcelona e Marseille fizeram esse investimento e hoje são modelos para o mundo. Por que os projetos que existem não prosperam em Salvador?”, provoca Attal.
“Todos os turistas que chegam de navio, chegam pelo Comércio, mas não ficam aqui porque não tem o que fazer. O potencial turístico com a história da cidade é fenomenal, mas muito mal aproveitado”, reflete.
Mas apesar de não descartar, o diretor e empresário ainda não tem planos para recuperar outros espaços no bairro, embora vislumbre movimentos importantes para que o interesse pela região aumente. “Queremos criar uma feira regular para a população frequentar o bairro. Isso existe em São Paulo, Rio, Paris, em cidades italianas… mas pra essa circulação acontecer, precisamos ter equipamentos necessários à população, como padarias, mercados, etc. Isso pode salvar o Comércio”, pondera o francês, que questiona inclusive a possibilidade de um novo circuito de Carnaval no bairro.