A última colherada vale ouro: confeiteiras assumem o protagonismo e marcam nova fase da gastronomia em Salvador

A última colherada vale ouro: confeiteiras assumem o protagonismo e marcam nova fase da gastronomia em Salvador

Redação Alô Alô Bahia

redacao@aloalobahia.com

José Mion/Alô Alô Bahia

Reprodução/Redes Sociais

Publicado em 01/08/2025 às 04:58 / Leia em 7 minutos

Durante muito tempo, a confeitaria foi o parêntese tímido da gastronomia em Salvador, um complemento doce ao prato principal, raramente tratado com o mesmo prestígio. Mas esse cenário mudou. Nos últimos anos, a capital baiana vive uma verdadeira virada de chave: sobremesas deixam de ser coadjuvantes e assumem lugar de protagonismo em menus autorais, vitrines e experiências gastronômicas completas.

E mais, quem conduz essa transformação, em sua maioria, são mulheres. Por décadas, elas foram sistematicamente subestimadas nas cozinhas de grandes restaurantes e chegou a hora de dar nome e rosto aos talentos que movem a confeitaria local.

Lisiane Arouca, do Grupo Origem, entre as melhores do Brasil | Foto: Reprodução/Redes Sociais

“Quando comecei, era normal a sobremesa ser tratada como algo menor. Petit gâteau, brownie, pudim… tudo muito igual e, muitas vezes, comprado congelado”, lembra Lisiane Arouca, chef do premiado Grupo Origem, eleita Chef Pâtissier do Ano de 2023 pela revista Prazeres da Mesa. “A confeitaria não era vista como algo técnico ou relevante. Mas, hoje, vejo clientes que vão ao Ori, por exemplo (uma das casas do Grupo Origem, que comanda ao lado do marido, o chef Fabrício Lemos), só para comer sobremesa. Isso mostra como a percepção mudou”, destaca.

Sobremesa de Lisiane Arouca | Foto: Reprodução/Redes Sociais

A trajetória de Lisiane, iniciada com receitas de infância anotadas em um caderninho que ela ainda guarda, espelha a de muitas outras: marcada por autodidatismo, superação e resistência em um mercado que por muito tempo não via espaço para doçuras autorais, ainda menos quando vindas de mãos femininas.

“Sempre achei Salvador aberta a confeitaria, tanto que temos nomes grandes há anos no mercado. O que estamos vendo mais agora, na minha opinião, são confeitarias com propostas diferentes do tradicional, mais autorais e mais técnicas“, pontua Cecília Moura, da Le Lapin. “A realidade que eu enxergo é que confeitaria é extremamente técnica e muito difícil e, por isso, difícil de dominar, não é para qualquer um. Então, é mais fácil diminuir algo pela sua complexidade do que enaltecer”, reflete sobre os anos de desvalorização.

Cecilia Moura está à frente da Le Lapin | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Para ela, que se profissionalizou na renomada Le Cordon Bleu e hoje comanda uma confeitaria contemporânea na Pituba, a curiosidade crescente do público por doces mais autorais e sofisticados é uma das engrenagens dessa transformação. “O público está mais curioso, querendo ser surpreendido já na primeira colherada. Não só o sabor, mas o visual precisa surpreender também. Hoje em dia, com as redes sociais, tudo isso ficou maior e eu acho ótimo, porque nos desafia a crescer para atender expectativas”, destaca.

Sobremesa de Cecilia Moura | Foto: Reprodução/Redes Sociais

A consultora Luiza Vilhena, responsável pelas sobremesas de casas como Soho, Miss Koh e Casa Iryna, vê essa mudança como um reflexo direto de um amadurecimento cultural. “Hoje, chefs e confeiteiros estão se permitindo explorar frutas, sabores e a identidade da nossa terra. A confeitaria está se reconhecendo como parte fundamental da experiência gastronômica“, reflete.

Fabi Araújo é uma das pioneiras em chocolate em Salvador | Foto: Arleande Torres

Essa virada também desafia o status quo da formação acadêmica. “A faculdade não prepara para confeitaria”, afirma Fabi Araújo, da Casa Ópera, que, desde 2019, produz chocolate bean to bar em Salvador, um feito pioneiro na cidade. Segundo ela, é na prática, com estudo e persistência, que o profissional vai realmente construir uma trajetória.

O Bolo Amanteigado da Casa Ópera só não é mais famoso que as pipocas da casa | Foto: Malu Serafini

No seu devido lugar

Jeanne Garcia abriu confeitaria há menos de um ano | Foto: Pedro Mascarenhas

“A sobremesa fecha a experiência. Uma sobremesa boa surpreende e encanta qualquer pessoa. Nem as que dizem não gostar de doce resistem”, defende Jeanne Garcia, à frente da confeitaria que leva seu nome. Ela também aponta o impacto das redes sociais na elevação do nível técnico e estético dos doces: “Graças à democratização do conhecimento, com as redes sociais, as pessoas conhecem mais e estão mais exigentes. Eu acho isso muito bom; nos desafia e incentiva como profissionais”, pondera.

As vitrines de Jeanne estão sempre cheias, com destaque para os macarons autorais, com farinha de castanha de caju | Foto: Pedro Mascarenhas

Para a alemã Kafe Bassi, do Manga, restaurante eleito o Melhor do Nordeste este ano, pela Prazeres da Mesa, a confeitaria em Salvador vive um momento empolgante. “Fico muito feliz vendo a confeitaria ganhar mais destaque e atenção e ver mais e mais casas abrindo em Salvador, com diferentes propostas e uma confeitaria muito autoral, criativa e de muita qualidade”, defende. Ela concorda com Jeanne quanto ao peso da sobremesa em uma experiência gastronômica completa: “É muito alto! A sobremesa fecha o menu e é a última impressão que o cliente leva para casa. Então, com um pouco de atenção e dedicação a essa parte do menu, você deixe seu cliente sair feliz!”, diz.

Kafe Bassi | Foto: Leo Freire

Kafe se formou na Alemanha e passou por cozinhas estreladas na Europa e no Brasil, como o D.O.M, de Alex Atala, onde se apaixonou pelos ingredientes locais e pelo marido, o baiano Dante, com quem comanda o Manga. Ela destaca que o reconhecimento atual também passa pela transparência e valorização do processo. “O picolé do Manga custa R$ 30, uma sobremesa entre R$ 65 e R$ 75, mas os nossos clientes entendem, porque elas estão tão elaboradas quanto os pratos salgados e usamos produtos de alta qualidade”, explica. Não à toa, há quem vá lá de vez em quando só para comer a sobremesa, incluindo este repórter que vos escreve.

Kafe cria verdadeiras obras de arte que atraem público fiel | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Uma nova geração, um novo caminho

Todas as entrevistadas apontam a valorização dos ingredientes locais, a redução do açúcar e a criatividade como tendências da confeitaria contemporânea. Mais do que modismo, trata-se de consciência estética, técnica e afetiva. O açúcar vira coadjuvante; o terroir baiano, protagonista.

Luiza Vilhena | Foto: Reprodução/Redes Sociais

“Estamos vivendo um grande momento da confeitaria em Salvador”, afirma Luiza Vilhena, que tem passagem por cozinhas profissionais de renome, como a do paraibano Onildo Rocha, que hoje comanda o Notiê, em São Paulo, três anos seguidos o Melhor Restaurante da cidade pela Veja. “Existe um movimento de retorno à essência, à simplicidade com elegância, e acredito que o Nordeste tem tudo para se destacar nesse cenário com suas frutas, castanhas e sabores únicos“, celebra.

Criação de Vilhena para o Casa Iryna | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Esse futuro já começa a ser construído por mãos firmes, sensíveis e altamente capacitadas. Mãos que medem, derretem, equilibram, transformam… e, acima de tudo, resistem. Mãos de mulheres que, enfim, ocupam o lugar que sempre mereceram: o centro do prato, o toque final.

Compartilhe

Alô Alô Bahia Newsletter

Inscreva-se grátis para receber as novidades e informações do Alô Alô Bahia